Resumo:

A Defensoría del Pueblo da Bolívia passa, no ano de 2022, por um conturbado processo político de seleção e designação da Defensora ou Defensor del Pueblo. A imparcialidade da escolha e a autonomia institucional para atuar de forma contramajoritária e independente dos demais Poderes na garantia e promoção de direitos humanos são requisitos mínimos para o reconhecimento desta como Instituição Nacional de Direitos Humanos na comunidade internacional. Este trabalho analisa o processo eleitoral de 2022 e conclui que toda essa tensão experimentada durante o processo de seleção e designação da defensora ou defensor evidencia a força política que carrega essa instituição para influenciar de forma democrática as demais instituições impactando na dinâmica da realidade constitucional e que o aprofundamento democrático exige tempo, aperfeiçoamento constante das práticas institucionais e controle social.

Abstract:

In 2022, the Ombudsman of Bolivia goes through a troubled political process of selection and designation of the institutions´s autrhority. The impartiality of choice and institutional autonomy to act in a countermajoritarian manner and independently of the other Powers in guaranteeing and promoting human rights are minimum requirements for its recognition as a National Human Rights Institution in the international community. This work analyzes the 2022 electoral process and concludes that all this tension experienced during the process of selection and designation of the authority highlights the political force that carries this institution to democratically influence the other institutions impacting the dynamics of the constitutional reality and that democratic deepening requires time, constant improvement of institutional practices and social control.

Palavras-chave:
    • Defensoría del Pueblo;
    • Bolívia;
    • eleição;
    • Direitos Humanos;
    • desenho institucional.
Keywords:
    • Ombudsman;
    • Bolivia;
    • election;
    • human rights;
    • institutional design.

Este trabalho é inspirado nos estudos e debates travados durante a disciplina Desenhos Constitucionais do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD-UFRJ), cujo enfoque recaiu sobre os novos desenhos institucionais que surgem na América Latina, especialmente, com a promulgação das constituições da Bolívia e do Equador, fundadas segundo os princípios democráticos de inclusão e participação adequados ao significado semântico de soberania popular (Kalyvas, 2005).

As constituições da Bolívia e do Equador estão inseridas dentro da corrente constitucional denominada novo constitucionalismo latino-americano (NCLA), também chamados de constitucionalismo transformador ou constitucionalismo andino. Essas constituições não surgem de qualquer tipo de abstração teórica, mas sim como o resultado de processos muito concretos de lutas de grupos historicamente alijados do poder, em especial, os povos e nações indígenas.

Como bem observa Alterio (2014, p. 278-279), estas são constituições plenamente normativas que buscam refundar seus respectivos Estados. Assim sua função não é a de organizar e limitar o poder, mas sim desenhar mecanismos democráticos por meio dos quais o poder constituinte (o povo) segue manifestando sua vontade.

São sinais característicos dos ordenamentos inaugurados por essas novas constituições, ao menos de uma perspectiva normativa: a abertura à interpretação constitucional extrajudicial, a participação social nas instituições políticas e econômicas e a recuperação das relações entre direito e política (Alterio, 2014, p. 279).

É importante ressaltar o protagonismo popular na determinação do sentido constitucional por meio de diversos arranjos institucionais participativos e inclusivos como a escolha de membros para os tribunais constitucionais, o amplo acesso da cidadania aos tribunais, a legitimação universal ativa para a propositura da ação de inconstitucionalidade, dentre outros. Mas que a seu turno aumentam a tensão no interior desses ordenamentos, inclusive, com risco de torná-los inviáveis (Alterio, 2014, p. 284).

O tensionamento político em torno dessas questões são um ponto de observação que pode ser interessante para análise das instituições e dos arranjos institucionais, porque a garantia ampla de participação e inclusão tornam visíveis ou mesmo possíveis conflitos que não viriam à tona caso se mantivessem fechadas as portas de acesso ao poder.

Diante dessa consideração, tomo como objeto de estudo o processo recente de escolha da Defensora ou Defensor del Pueblo da Bolívia para o mandato de 2022-2028 com o propósito de observar as tensões e disputas em torno da escolha deste agente com função institucional de promover e garantir os direitos humanos dos bolivianos em âmbito nacional e internacional.

Busco, dessa forma, compreender as práticas institucionais e tensões políticas envolvendo a escolha Defensora ou Defensor del Pueblo, desde a perspectiva própria do constitucionalismo andino, evitando lançar sobre este um olhar de turista que tenta apreender a cultura do outro a partir de suas próprias estruturas e, portanto, incapaz de conhecê-la verdadeiramente.

Defensorías del Pueblo

Na América Latina, as Defensorías del Pueblo, também conhecidas em outros ordenamentos como Ombudsman ou Ouvidorias, surgem nos anos 1990, durante a fase de transição democrática, tocando a essas instituições a tarefa de proteção e garantia dos direitos fundamentais (IIDH, 2006).

Embora os desenhos institucionais tenham como inspiração os modelos sueco e espanhol, as Defensorías del Pueblo foram desenvolvidas conforme as necessidades de cada país. Segundo o IIDH (2006), dentre as competências dessas instituições estão a defesa dos direitos humanos, controle não jurisdicional dos atos da Administração Pública, contribuição com os Ministérios Públicos para casos em que envolva instauração de procedimento criminal, além da promoção e educação em Direitos Humanos.

Essas instituições não se sujeitam a formalismos e rituais jurídicos no tratamento dos casos que lhes são submetidos, o atendimento é gratuito com amplo acesso dos cidadãos e gozam de plena autonomia institucional para a efetiva proteção dos direitos fundamentais. Segundo o IIDH (2006), na América Latina apenas o Uruguai, a República Dominicana, o Chile e o Brasil não contam com uma instituição desse tipo.

A grande vantagem dessas instituições para os povos e nações indígenas ou movimentos sociais menos organizados é que a apresentação de uma demanda junto ao gabinete da Defensora ou Defensor de Pueblo não exige personalidade jurídica ou qualquer outro tipo de formalidade para o seu acesso. Quando a demanda é apresentada, o assistido recebe orientação jurídica gratuita e o demandado é instado a apresentar resposta e todas as informações e documentos de que dispõe a respeito do caso.

Segundo o IIDH (2006), o acesso da cidadania é amplo, não se dá apenas de forma presencial, podendo ser utilizados ainda a comunicação escrita e o contato telefônico. A Defensora ou Defensor del Pueblo também pode atuar de ofício quando tiver conhecimento de alguma violação de direitos humanos.

O idioma também não se configura como obstáculo, alguns escritórios contam com tradutores de idiomas indígenas, outros com pessoas indígenas que trabalham na instituição para facilitar a comunicação. De modo que os casos são analisados e compreendidos dentro da estrutura linguística daquele povo ou nação e com respeito a:

a espiritualidade dos povos indígenas em sua inter-relação com a natureza, suas autoridades tradicionais, o Direito indígena, suas formas de resolução de conflitos para o alcance do equilíbrio e da paz social, seus territórios originários, ancestrais ou de ocupação tradicional, os recursos naturais imersos nestes territórios, entre outras questões (IIDH, 2006, tradução livre).

Trata-se, portanto, de uma importante instituição para a mediação das demandas dos povos e nações indígenas e as demais instituições do Estado ante ao alto grau de acessibilidade e suas competências institucionais para exigir do Estado o cumprimento do Convênio 169 da OIT - instrumento jurídico para a garantia e proteção dos direitos indígenas - o qual tem como princípios fundamentais a consulta, a participação e a autodeterminação dos povos indígenas.

Importante observar que de acordo com estudo realizado pelo IIDH (2006), essas instituições gozam de legitimidade junto aos povos indígenas que as veem como um espaço de diálogo onde suas demandas podem ser ouvidas. Assim como seus informes e recomendações gozam de força política persuasiva sobre as instituições estatais. Ou seja, o manejo de suas capacidades institucionais produz efeitos sistêmicos positivos, funcionando como força política de intervenção democrática na vida de outras instituições ou de cidadãos (Almeida, Bolonha e Rangel, 2013).

Tendo em vista a força política dessa instituição, não causa espanto as disputas de ordem política em torno do processo de escolha da Defensora ou Defensor del Pueblo da Bolívia para o próximo mandato (2022-2028). Para melhor compreender esse processo é preciso antes conhecer a matriz normativa dessa instituição.

Desenho institucional do processo de escolha da Defensora ou Defensor del Pueblo na Bolívia

A Defensoría del Pueblo da Bolívia foi criada no ano de 1994, por meio da reforma à Constituição de 1967 e, posteriormente, regulamenta por meio da Lei 1.818/1997 (Calabrich, 2014). Embora criada na vigência da Constituição de 1967, a Constituição transformadora de 2009 recepcionou a instituição, estipulando as seguintes competências:

  • A Ouvidoria assegurará a validade, promoção, divulgação e o cumprimento dos direitos humanos, individuais e coletivos, que estão estabelecidos na Constituição, nas leis e nos instrumentos internacionais. A função da Defensoría alcançará a atividade administrativa de todo o setor público e a atividade de instituições privadas que prestam serviços públicos.

  • A Ouvidoria também será responsável por promover a defesa dos direitos das nações e povos indígenas originário camponeses, de comunidades urbanas e interculturais, e de homens e mulheres bolivianos no exterior.

  • A Ouvidoria é uma instituição com autonomia funcional, financeira e administrativa, no âmbito da lei. As suas funções serão regidas pelos princípios da gratuidade, acessibilidade, rapidez e solidariedade.

    No exercício de suas funções, não recebe instruções dos órgãos do Estado. (Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia, 2019, art. 218, tradução livre).

A partir da Constituição de 2009 (Bolívia, 2009), a instituição passou a gozar de plena autonomia - autonomia financeira, institucional e administrativa. Antes, na vigência da Constituição de 1967, embora se lhe reconhecesse independência, estava dentro da estrutura do Poder Legislativo e vinculada ao orçamento daquele Poder.1 Dispor de infraestrutura e financiamento adequados para o exercício de suas atividades é importante para a garantia de autonomia em relação aos poderes executivo, legislativo ou judiciário.

No ano de 2016, foi aprovada a Lei 870/2016 (Bolívia, 2016), que revogou a Lei 1.818/1997 (Bolívia, 1997), com o objetivo de regulamentar as atribuições, prerrogativas, organização e funcionamento da instituição dentro do marco da Constituição (Bolívia, 2009) fundada na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, e no processo de integração do país, o que exige da instituição uma atuação muito próxima dos setores e grupos sociais com finalidade de consolidação do Estado Plurinacional.

Interessam-me as normas acerca do processo de escolha da Defensor Defensora ou Defensor del Pueblo insertas no capítulo II da Lei 870/2016 (Bolívia, 2016). Com relação ao perfil, são estipulados os seguintes requisitos:

  • Ser de nacionalidade boliviana.

  • Ter trinta (30) anos completos à data da sua nomeação.

  • No caso de homens, que tenham cumprido funções militares.

  • Não possuir auto de infração ou condenação em matéria criminal executada, pendente de cumprimento.

  • Não ser incluída ou incluído nos casos de proibição ou incompatibilidade estabelecidos na Constituição Política do Estado.

  • Estar inscrita ou inscrito no Cartório Eleitoral.

  • Falar pelo menos duas (2) línguas oficiais do Estado.

  • Não ter qualquer grau de parentesco até o terceiro grau de consanguinidade e segundo grau de afinidade, com membros da Assembleia Legislativa Plurinacional, com as autoridades hierárquicas dos Órgãos do Estado ou com o Presidente do Estado Plurinacional.

  • Ter integridade pessoal e ética comprovada, determinada por observância pública.

  • Ter uma trajetória reconhecida na defesa dos direitos humanos.

  • Não ter sido condenado por crimes ou sancionados por crimes relacionados à violência contra a mulher, violência contra criança ou adolescente, tráfico e contrabando de pessoas ou qualquer crime previsto na Lei de Combate à Corrupção, Enriquecimento Ilícito e Investigação de Fortunas. (artigo 7 da Lei 870/2016 (Bolívia, 2016)

O Defensor ou Defensora del Pueblo deverá ser, portanto, alguém que dentre outras características possui trajetória reconhecida na defesa dos direitos humanos, não sendo exigida qualquer formação específica, mas dedicação exclusiva ao cargo, pois incompatível com qualquer outra atribuição pública ou privada, independentemente de remuneração, à exceção da docência universitária. (art. 8, I da Lei 870/2016, Bolívia, 2016).

O processo escolha tem início quarenta e cinco dias antes do término do mandato da Defensora ou Defensor del Pueblo em atuação. Compete à Assemblei Legislativa Plurinacional (ALP) iniciar o processo com a aprovação do edital de convocação, no qual são estabelecidos critérios de avaliação, idoneidade, trajetória e integridade pessoal e ética, assim como etapas de impugnação.

A verificação do cumprimento dos requisitos estabelecidos na convocatória fica a cargo da Comissão Mista de Constituição, Legislação e Sistema Eleitoral da ALP que analisará ainda a condições gerais de acesso ao serviço público, as incompatibilidades, em um processo transparente, podendo cruzar informações dos registros públicos para o fim de verificar a idoneidade e trajetória da candidata ou candidato na defesa dos direitos humanos. Por meio de maioria simples de votos é aprovada a lista nominal que seguirá para a ALP que no prazo de quinze dias deverá convocar a eleição.

Os procedimentos de eleição e designação competem ao plenário da ALP que por dois terços dos votos dos presentes selecionará dentre os habilitados da lista nominal enviada pela Comissão Mista de Constituição, Legislação e Sistema Eleitoral da ALP. Já a posse é dada pela Presidenta ou Presidente da ALP. O mandato da Defensora ou Defensor del Pueblo tem duração de seis anos, contados da posse, sem possibilidade prorrogação ou nova designação.

O término do mandato poderá decorrer de renúncia, cumprimento do lapso temporal de seis anos, incapacidade permanente e absoluta superveniente, sentença penal condenatória executória, sanção administrativa executada, incompatibilidade superveniente prevista em normativa vigente. Em quaisquer dos casos, a Defensora ou Defensor del Pueblo poderá ser substituído temporariamente por qualquer Delegada ou Delegado Defensorial Adjunto, que será indicado pela ALP, enquanto se realiza novo processo de eleição, seleção e designação.

Perfil das Defensoras e Defensores del Pueblo bolivianos

A primeira Defensora del Pueblo, a jornalista e ativista de direitos humanos Ana Maria Romero de Campero, foi eleita pelo Congresso boliviano para um mandato que durou de 1998 a 2003. De acordo com informação do portal da Defensoría de Pueblo da Bolivia, durante sua gestão foram abertos a maioria dos escritórios defensoriais - um período de consolidação da instituição no ordenamento e ao mesmo tempo de expansão.

Posteriormente, foi eleito pelo Congresso, um bacharel em ciências jurídicas e políticas com mestrado em Direito Constitucional, Waldo Albarracín Sanchez, cujo período é marcado pela ampliação da estrutura e investimento nas áreas mais críticas de atuação da defensoria.

Entre 2010 e 2016, esteve a frente da instituição, Rolando Villena Villegas, teólogo e bispo de igreja evangélica, que se descreve como um homem democrático de convicções de esquerda. Não há na página da defensoria outras informações acerca do seu mandato, exceto que trabalhou entre 2006 e 2009 na Assembleia Permanente de Direitos Humanos da Bolívia.2

O penúltimo defensor, com mandato de 2016 a 2019, foi David Alonzo Tezanos Pinto Ledezma, com formação em Direito e pósgraduação em ciências criminais com histórico de atuação em diversas funções públicas. Foi Diretor Nacional do Serviço Plurinacional de Defesa Púbica, entre janeiro de 2014 e maio de 2016, Diretor Geral de Justiça e Direitos Fundamentais de maio de 2011 a janeiro de 2014, Secretário Geral da Controladoria Geral do Estado de janeiro de 2009 a maio de 2011.

Por fim, a atual Defensora del Pueblo, é a advogada e docente Nadia Alejandra Cruz Tarifa, mestra em Direito e Processo Constitucional, com formação também na área de economia plural e comunitária, liderança e cidadania, e em educação superior.

Como advogada, Nadia atuou na Comissão Jurídica do Comitê de Julgamento contra Leopoldo Fernández para o caso Porvenir3 e fez parte da Comissão de Julgamento de Responsabilidade contra Gonzalo Sanchez de Lozada e seus colaboradores.4 Foi assessora jurídica da Associação de Familiares de Detidos, Desaparecidos e Mártires da Libertação Nacional (Asofamd)5 entre 2007 e 2010 e em 2015; entre 2006 e 2010 fez parte da Assembleia Permanente de Direitos Humanos de La Paz. Em 2019, foi eleita interinamente pela ALP para um mandato que se encerraria em maio de 2022, mas que não se encerrou devido a falta de consenso entre os parlamentares quanto à escolha do próximo Defensor ou Defensora Del Pueblo.

Conflitos em torno do processo eleitoral: o que está em disputa?

O levantamento das informações acerca do processo eleitoral para escolha da Defensora ou Defensor del Pueblo foi realizado por meio da página de buscas do google na aba notícias tendo como palavras chaves “eleccion defensor del pueblo bolivia” e “convocatoria defensoria del pueblo bolivia”.

A disputa envolvendo a base governista e a oposição6 teve início já na fase de debates acerca das regras do processo seletivo. A oposição vinha argumentando que o regulamento continha vícios com vistas ao direcionamento para um candidato com afinidade a ideologia e posicionamento político do MAS.

O Creemos, partido de oposição, por exemplo, criticava a regra que estabelecia como incompatibilidade o candidato ou candidata haver expressado opiniões ou agido com discriminação, racismo ou participado de ações de ruptura da ordem constitucional. Seu ponto era o de que a noção de ruptura da ordem constitucional era parte de um discurso político adotado pelo, MAS como parte de uma narrativa de que teria havido um golpe de estado contra o Presidente Evo Morales nas eleições de 2019 (Corz, 2022).

Já o Comunidad Ciudadana (CC) propôs um projeto de lei para modificar a Lei 870/2016 (Bolívia, 2016) com o objetivo de que se estabelecesse um quórum de 2/3 de votos não apenas para a designação da nova autoridade, mas para todas as etapas deliberativas do processo, que pela lei atual se aprova por maioria simples (Corz, 2022).

A Comissão Mista de Constituição, Legislação e Sistema Eleitoral da ALP deliberou e chegou a um consenso acerca da convocatória e seu regulamento, levando em consideração as propostas do MAS e da CC. Foram modificados cinco artigos, que se referiam à avaliação dos candidatos, ao conhecimento da constituição política do Estado e de outros instrumentos internacionais de direitos humanos, graus de parentesco e mecanismos de impugnação (El Diario, 2022).

O processo eleitoral para a escolha da nova Defensora ou Defensor del Pueblo teve início em 17 março de 2022. A expectativa era de que a eleição se concluísse em maio de 2022. No entanto, até o fechamento deste artigo, em 21 setembro de 2022, o processo ainda não havia sido concluído. Isso porque, conforme notícia de 02 de setembro de 2022, publicada no portal de notícias El Debate (2022), por falta de consenso entre parlamentares governistas e de oposição, o processo segue em suspenso indefinidamente.

Na última tentativa, em 1º de setembro de 2022, quinta rodada de votações, dos 7 candidatos habilitados (3 mulheres e 4 homens) (OCD, 2022), apenas 3 foram votados: o candidato que contou com o apoio da bancada majoritária do MAS, Pedro Callisaya, alcançou 97 votos; Evelín Cossío, 44 votos; Claudia Calvo, 1 voto. Foram registrados 15 brancos e 2 nulos, dos 159 votantes.

Nas quatro rodadas anteriores, Callisaya também concentrou o maior número de votos: 65 votos na primeira rodada, 82 na segunda, 92 na terceira y 99 na quarta (OCD, 2022).

Nessa última rodada, o primeiro colocado precisava alcançar 2/3 dos votos dos 159 votantes, ou seja, 106 votos, o que não foi possível. A oposição e os governistas ainda se reuniram para tentar selar um acordo. Porém, a oposição resistiu à designação de Callisaya, um advogado que foi funcionário do estado e que segundo estes tem afinidade com a base governista. A regra de 2/3 demanda do MAS uma postura de busca por consenso com as oposições, que, por seu turno, faz valer seus votos para obstar a ascensão do candidato que acreditam ter afinidade com o, MAS. Os 15 votos em branco foram precisamente do Creemos que já havia adiantado que esta seria uma manifestação de rejeição ao processo eleitoral.

Toda essa movimentação chamou a atenção do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (OACNUDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que pediram à ALP que se garantisse a independência e imparcialidade da nova autoridade.

A Alianza Observación Ciudadana de la Democracia OCD Bolivia (OCD), uma instituição da sociedade civil boliviana, que se atribui o papel de velar que se atribui o papel de velar pela institucionalidade democrática e promover uma participação cidadã, oportuna e ativa nos assuntos públicos, publicou suas considerações em seu portal de notícias acerca desse conturbado processo eleitoral.

Para a OCD, que acompanhou de perto os trâmites como instituição observadora, o processo desde as primeiras etapas foi marcado por subjetividade, pouca organização e falta de consenso na etapa final. Na etapa de avaliação de méritos, na qual 16 postulantes foram habilitados, o sistema de avalição “cumpre ou não cumpre” possibilitou a habilitação de candidatos com e sem experiência, e até alguns sem trajetória na defesa de direitos humanos.

A OCD já havia expressado preocupação com esse método de avaliação à Comissão Mista de Constituição, Legislação e Sistema Eleitoral da ALP, denunciando a falta de objetividade, porque mascarava as características de trajetória, experiência e conhecimentos dos candidatos.

Após a fase avaliação de méritos, teve início a fase de entrevista e, após sua conclusão, a Comissão Mista reuniu-se para definir a metodologia de avaliação dos candidatos. Sessão esta que foi interrompida pelos representantes do CC que denunciavam una notória linha política na avaliação dos governistas e pediam para que se avaliassem os postulantes inabilitados que contavam com as capacidades e trajetórias necessárias para sua habilitação. Porém, os representantes do MAS recusaram a denúncia. Desta etapa saíram os 7 habilitados à fase de designação.

A OCD destaca que o processo se guiou por excesso de informalidade, pouca organização durante as entrevistas, repetição de perguntas aos entrevistados, falta de seriedade na verificação do domínio de um idioma originário.

Da descrição do processo e das críticas produzidas pela OCD é possível observar que o aprofundamento da democracia requer tempo, práticas que vão se aperfeiçoando e controle da sociedade civil. Embora à primeira vista, o processo pareça conturbado, é preciso também observar a possibilidade de disputa, resultado da correlação de forças que hoje opera dentro da ALP, a qual, por seu turno, somente se verifica como possibilidade quando todas as partes conseguem exercer alguma força ou poder dentro desse sistema, pois do contrário os consensos seriam obtidos facilmente por absoluta falta de resistência.

Considerações finais

O conflito ou disputa que se observa na escolha da Defensora ou Defensor del Pueblo evidencia a força política dessa instituição que tem potencial para contribuir para a luta emancipatória das pessoas e grupos alijados do poder por processos sócio-históricos de exclusão. No entanto, outras questões exsurgem: seriam essas práticas suficientes para romper com a colonialidade do poder?7 Criam as condições necessárias para que esses grupos possam acessar espaços de poder? Os mecanismos e ferramentas que adotam tem potencial para traduzir adequadamente as demandas de pessoas e grupos vulneráveis?

Essas perguntas são importantes, pois como bem observa ALÓ (2022, p. 100), “apesar da combinação de práticas de poder trazidas pelo novo constitucionalismo latino-americano, elas são consideradas circunstanciais”. Ou seja, os mecanismos de aprofundamento da democracia, como a escolha de um importante ator do processo de lutas por direitos humanos, ainda se encontram em desenvolvimento.

No que se refere ao processo para designação da Defensora ou Defensor Público del Pueblo, a falta de um processo objetivo e imparcial para a escolha de uma autoridade comprometida com os direitos humanos, demonstra que embora se reconheça normativamente a necessidade de ruptura com a colonialidade do poder, as práticas institucionais - o “como fazer” - estão longe de criar as condições de possibilidade para o reequilíbrio do jogo de forças.

A escolha de uma autoridade apta a exercer um poder contramajoritário e autônomo é essencial para a luta emancipatória, tendo em vista que necessitará fazer uso dessas prerrogativas para demandar contra o Estado e lutar contra eventuais arbitrariedades no exercício do poder. Não estou com isso a afirmar que a instituição hoje não goza dessa autonomia, mas sem dúvidas, ainda é necessário consolidar práticas institucionais de seleção e designação que assegurem a plena autonomia das Defensoras e Defensores del Pueblo.

Notas de rodapé:
  • 1

    A autonomia em relação aos poderes constituídos é fundamental para o reconhecimento das Defensorías del Pueblo como Ins-tituição Nacional de Direitos Humanos (INDH). As INDH são organismos estatais de mediação entre Estado, sociedade civil e organismos internacionais de direitos humanos, que devem seguir os Princípios de Paris. Podem ser criados por meio de norma constitucional ou infraconstitucional. As atribuições podem ser exercidas por defensorias públicas, defensorías del pueblo, procuradorias de direitos humanos, ouvidores etc. A certificação como INDH é conferida pelo Comitê Internacional de Coordenação das Instituições Nacionais que analisa se as INDH cumprem os Princípios de Paris. Essa certificação permite participar e ter voz no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. A Defensoría del Pueblo da Bolívia é reconhecida como INDH. (Bichara, 2022; Trelles, 2022).

  • 2

    Entidade civil, sem filiação política ou religiosa, cujo objetivo é a proteção do livre exercício e aplicação dos direitos humanos em todas as áreas do território nacional (OMCT).

  • 3

    Massacre ocorrido em setembro de 2008 contra um grupo da população de Porvenir que seguia para a capital de Pando, Cobija, para apoiar o Presidente Evo Morales em meio a manifestações de opositores apoiados por Leopoldo Fernández, que foi condenado a 15 anos de prisão por 13 mortes. Fernández alega inocência e que teria sofrido julgamento político.

  • 4

    Ex-presidente da Bolívia e colaboradores julgados pelo crime de genocídio pela morte de 67 pessoas durante protestos em 2003 nas cidades El Alto e La Paz (BBC, 2009).

  • 5

    Lugar de memória dos que lutaram contra a ditadura civil-militar da Bolívia (1964-1982). Informações em: http://asofamd.blogspot.com/.

  • 6

    A Bolívia foi governada entre 2006 e 2019 pelo ex-presidente Evo Morales, primeiro indígena eleito democraticamente. Morales faz parte do partido Movimento para o Socialismo (MAS), considerado um partido de esquerda. O, MAS tentou alterar a Constituição boliviana para permitir mandatos consecutivos, sem limite de reeleições, porém a proposta não foi aceita pelo voto popular. Evo, no entanto, conseguiu uma autorização do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) em 2017, para con-correr às eleições de 2019, dando início a uma profunda crise democrática que culminou com sua renúncia e a convocação de novas eleições em 2020, na qual foi eleito o presidente Luis Arce, do mesmo partido de Evo Morales, o MAS (Di Spagna, 2022)..

  • 7

    A colonialidade do poder é um conceito chave desenvuelto por Quijano (2005) que explica determinado padrão de poder hegemônico na América Latina. O autor observa que, mesmo com o fim do colonialismo, o poder segue sendo exercido com base na ideia de raça e pureza de sangue que permitiu a hierarquização de indivíduos e grupos sociais, que tem origem na modernidade.

Referências
Histórico:
  • » : 31/08/2024» : 2023Jul-Dec