Resumo:

Com a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu a necessidade da formação de profissionais competentes a lidar com determinantes multifatoriais do processo saúde-doença. Assim, no decorrer de iniciativas voltadas ao fortalecimento de recursos humanos, o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde) se configura como uma política que alinha a teoria à realidade ao inserir discentes em diferentes espaços do SUS. A pesquisa analisou a percepção de integrantes do PET-Saúde Interprofissionalidade da Universidade Federal do Paraná em face aos seus desafios e potencialidades. Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório e descritivo, mediante a realização de 18 entrevistas semiestruturadas. A pesquisa mostrou que os participantes conseguiram atingir competências para o trabalho interprofissional e colaborativo, corroborando com o SUS e seus princípios. Entretanto, a rigidez dos currículos acadêmicos, fragmentados segundo a lógica biomédica, persiste sendo um desafio à educação interprofissional. Sugerem-se estudos com a finalidade de elucidar tal lacuna.

Abstract:

With the establishment of the Unified Health System (SUS), the need arose for the training competent professionals to deal with multifactorial determinants of the health-disease process. Thus, in the historical course of initiatives aimed at strengthening human resources for SUS, the Education through Work in Health Program (PET-Health) is configured as a policy that aligns theory and reality by as it inserts students in different working scenarios of SUS. The research analyzed the perception of members of the PET-Health interprofessional program at the Federal University of Paraná regarding its challenges challenges and potentialities. This is a qualitative, exploratory, and descriptive study, through 18 semi-structured interviews. The research showed that the participants were able to achieve competencies for interprofessional and collaborative work, corroborating the SUS. However, the rigidity of the academic curricula, according to biomedical logic, remains a challenge to interprofessional education. Studies are suggested with the purpose of clarifying this gap.

Palavras-chave:
    • PET-Saúde;
    • Interprofissionalidade;
    • Educação na saúde;
    • Sistema Único de Saúde;
    • Políticas Públicas.
Key words:
    • PET- Health;
    • Inter professionality;
    • Health education;
    • Unified Health System;
    • Public Policies.

Introdução

Mediante o início da Reforma Sanitária no Brasil, também sob o a égide de uma série de movimentos internacionais de defesa do direito universal à saúde, como Alma-Ata e Ottawa, ocorre a valorização processual da concepção ampliada do processo saúde-doença de indivíduos e coletividades na sociedade brasileira. Ou seja, “fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, comportamentais e biológicos podem tanto favorecer como prejudicar a saúde” (Carta de Ottawa, 1986, p. 20). Nesse sentido, diferentes determinantes são capazes de incidir sobre os resultados sanitários e a qualidade de vida da população, dentre eles, o acesso à habitação, educação, alimentação, renda, terra, transporte, lazer, entre outros (Giovanella et al., 2019).

Até então, a assistência à saúde sofria fortemente a influência do modelo biomédico, o qual considerava o fator biológico como principal determinante sobre os processos de adoecimento e cura da população, baseado em práticas hospitalocêntricas, fragmentadas, altamente especializadas e centradas na posição uniprofissional da figura do médico. Distanciando-se dessa concepção e convergindo com o enfoque ampliado sobre a saúde, voltada a grupos sociais e não somente a indivíduos, o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) é, então, idealizado e concebido (Giovanella et al., 2019).

Com a concepção do SUS e seus princípios, ocasionou-se, também, a necessidade de uma nova perspectiva epistemológica de agir, fazer, ensinar e aprender saúde de maneira ampliada, humanizada e menos fragmentada, rumo à construção de uma política de desenvolvimento em recursos humanos para a saúde pública e à consolidação desse sistema, bem como suas diretrizes de universalidade, integralidade, equidade e participação social. Desse modo, a discussão acerca de uma estruturação pedagógica inovadora de ensino, com potencial para formar profissionais competentes às demandas multifatoriais da realidade, começou a ser elaborada sob o contexto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos na área da saúde no Brasil (Brasil, 2003; Giovanella et al., 2019).

Atendendo ao objetivo de formar profissionais de saúde críticos, A LDB e as DCN discorrem sobre a importância do desenvolvimento da aprendizagem no ambiente laboral; maior abertura dos serviços de saúde às instituições educacionais; flexibilização das estruturas curriculares de ensino; formação por competências; promoção da interação ensino-serviço-comunidade; estímulo ao trabalho interprofissional, multidisciplinar e colaborativo; proposição de metodologias de ensino inovadoras e criativas; aprendizagem significativa, ativa e reflexiva; e orientação dos processos educativos para as necessidades sociais em saúde e do SUS (Brasil, 1996, 2003, 2017).

Nesse cenário, as Metodologias Ativas (MA) de ensino-aprendizagem podem ser compreendidas como estratégias pedagógicas alternativas ao modelo tradicional de ensino e mais do que isso, como uma escolha político-pedagógica para que os diferentes atores sociais envoltos no processo de aprender possam construir o conhecimento de modo coletivo e democrático, a fim de transformar suas próprias realidades. Diferentes autores apontam como alicerces das MA a educação centrada no aprendiz, com autonomia e pró-atividade do educando; professor como mediador e facilitador da aprendizagem, em uma relação horizontal com o discente; interação entre teoria e prática, com problematização e experimentação da realidade, enfatizando a resolução de problemas (Bacich; Moran, 2018; De-Carli et al., 2019).

A Metodologia Ativa se caracteriza pela interrelação entre educação, cultura, sociedade, política e escola, sendo desenvolvida por meio de métodos ativos e criativos, centrados na atividade do aluno com a intenção de propiciar a aprendizagem (Bacich; Moran, p. 17, 2018).

Considerando os princípios teóricos das MA, o respaldo da LDB e das DCN, e as necessidades formativas históricas aventadas, a estruturação da Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) em 2003 no âmbito do SUS se fez um marco importante para a formulação de política públicas relacionadas à gestão, formação, qualificação e regulação do trabalho e profissões de saúde no Brasil. Passou-se a priorizar, cada vez mais, esforços para a construção de políticas indutoras de desenvolvimento em recursos humanos, seja na esfera dos cursos de graduação superior em saúde, seja na qualificação permanente de trabalhadores de saúde já inseridos no sistema público. Como iniciativa, destaca-se o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde), instituído em 2007 (Brasil, 2003, 2018a).

O PET-Saúde busca aproximar a Universidade do serviço público de saúde ao iniciar alunos de cursos de graduação da área ao mundo do labor, em diferentes cenários de práticas do SUS, além da reorientação dos currículos pedagógicos dos cursos, consoante os princípios das MA de ensino-aprendizagem, da LDB e das DCN. A execução do programa ocorre mediante a concessão de bolsas de extensão e a construção de grupos de aprendizagem tutorial, compostos por docentes universitários, discentes e trabalhadores do SUS como preceptores, para o desenvolvimento de ações estratégicas em áreas primordiais para a saúde pública brasileira (Brasil, 2018a; Almeida; Teston; Medeiros, 2019).

Até o momento, o programa já ofertou nove edições, contemplando 900 projetos em diversas regiões do país, com a promoção dos eixos de “Saúde da Família”, “Vigilância em Saúde”, “Saúde Mental”, “Redes de Atenção”, e “Graduações em Saúde”. Por meio de seu penúltimo edital, ocorreu a seleção de 120 projetos, a nível nacional, para o desenvolvimento da temática da “Educação Interprofissional e das Práticas Colaborativas (PET-Saúde Interprofissionalidade)”, sendo que um dos projetos selecionados foi executado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em conjunto com as Secretarias Municipais de Saúde (SMS) de Curitiba e Piraquara. Tal iniciativa articulou diversas ações na rede do SUS e da Universidade por meio de cinco grupos tutoriais, quais sejam: “Promoção da Saúde”, “Educação Popular, Mobilização e Controle Social na Saúde”, “Práticas Integrativas em Saúde e Abordagens Grupais”, “Redes de Atenção à Saúde”, e “Vigilância em Saúde” (Brasil, 2018a; Ferro et al., 2021). Discorrido isso, o presente trabalho pretende analisar a percepção de alguns professores, alunos e trabalhadores de saúde participantes do PET-Saúde interprofissionalidade UFPR/ SMS Curitiba/ SMS Piraquara, em face às potencialidades e desafios vivenciados durante o desenvolvimento do projeto.

Delineamento Metodológico

O estudo realizado é um projeto guarda-chuva, fruto da pesquisa “Metodologias Ativas: estruturas e concepções para a prática educacional”, aprobada pelo comitê de Ética do setor de Ciências da Saúde da UFPR, sob o número 3.229.786 e oriundo de uma dissertação de mestrado em Políticas Públicas da mesma Universidade. Para alcançar seus objetivos, o trabalho foi estruturado pela abordagem qualitativa, exploratória e descritiva. Participaram da pesquisa 18 integrantes do PET Saúde Interprofissionalidade UFPR/ SMS Curitiba/ SMS Piraquara, pertencentes a três dos cinco grupos tutoriais do projeto, dentre eles: “Redes de Atenção à Saúde”, “Vigilância em Saúde” e “Educação Popular, Mobilização e Controle Social na Saúde”. Dos 18 participantes quatro eram docentes coordenadores de grupo, três docentes tutores, seis discentes e cinco preceptores. Todos os grupos foram convidados, porém apenas três aceitaram e se sentiram confortáveis com a participação. Os critérios de inclusão residiram em possuir idade superior a 18 anos e ser componente do projeto.

Os dados foram coletados entre fevereiro e março de 2021 por meio de entrevistas semiestruturadas gravadas de forma remota, com a plataforma Google Meet, com a finalidade de se preservar o isolamento social decorrente da pandemia do Coronavírus 19 (Covid-19). As entrevistas foram numeradas de E1 a E18 aleatoriamente e se encerraram quando não foram obtidas novas informações, compreendendo o ponto de saturação teórica do estudo. As coletas ocorreram somente após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e todos os aspectos éticos previstos na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde foram preservados (Brasil, 2012).

Os dados coletados foram transcritos integralmente e analisados segundo o referencial teórico de análise de enunciação de Minayo (2014) para a delimitação de núcleos de sentido. Além disso, optou-se, no trabalho em questão, pela realização de uma análise de dados heurística por meio da eleição de unidades de registro baseadas em temas, sem a utilização de software para o processamento de textos de pesquisas qualitativas.

Consoante Minayo (2014), a análise de enunciação, uma modalidade de análise de conteúdo, segue tal percurso: a) Préanálise: transcrição de todas as entrevistas e estabelecimento do corpus de materiais a serem trabalhados, por meio de leitura flutuante, retomada de hipóteses e objetivos. Além disso, determinação da unidade de registro a ser utilizada (palavra-chave, frase, temas, entre outras formas); b) Exploração do material: classificação, agregação e redução do texto, por meio de convergências e disparidades, à núcleos teóricos ou empíricos significativos para orientar a análise; c) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: realização de uma análise lógica dos resultados, por meio de interpretações e inferências, para a compreensão de significados e inter-relação com o quadro teórico.

A seguir, elaborou-se um fluxograma ilustrativo (Figura 1) e uma tabela explicativa (Tabela 1) para exemplificar, respectivamente, as etapas seguidas na pesquisa e o percurso de desenvolvimento temático dos núcleos de sentido:

Etapas da pesquisa

Fonte: elaborado pelos autores com base no documento consultado Minayo (2014).

Eixos temáticos e Núcleos de sentido
Eixos Temáticos Núcleos de Sentido

Objetivos do projeto

O tema centrel do projeto

Vivência interprofissional

A interprofissionalidades e o trabalho colaborativo: do mote do projeto à vivência concreta

Mudança curriculares.

Propostas educativas.

A rigidez curricular universitária: uma tentativa de Mudança

PET- Saúde fortalezas.

Ações desenvolvidas

PET-Saúde desafios

PET-Saúde Interprofissionalidade: potencialidades e desafíos.

O advento da pandemia.

Os impactos da pandemia

O PET-Saúde e a vivência do momento pandêmico

Fonte: elaboração dos autores com base nos dados da pesquisa (2022).

Posto isso, a partir da sistematização e análise dos dados, foram constituídos quatro núcleos de sentido, desenvolvidos a seguir: 1) A interprofissionalidade e o trabalho colaborativo: do mote do projeto à vivência concreta; 2) A rigidez curricular universitária: uma tentativa de mudança; 3) PET-Saúde Interprofissionalidade: potencialidades e desafios; 4) O PET-Saúde e a vivência do momento pandêmico.

Resultados e Discussão

A interprofissionalidade e o trabalho colaborativo: do mote do projeto à vivência concreta

O PET-Saúde, concebido para promover a aproximação entre a tríade condutora ensino-serviço-comunidade e apoiar o enfrentamento coletivo de problemáticas comunitárias, possui como objetivos da edição de 2018, PET-Saúde Interprofissionalidade, a consolidação do SUS, seus princípios e diretrizes; a integração entre ensino, pesquisa e extensão; o estímulo à mudanças curriculares nos cursos de graduação em saúde, alinhadas às DCN; a iniciação de discentes ao mundo do trabalho, em diferentes locais da atenção básica do sistema público de saúde; a formação de profissionais para o SUS, assim como a qualificação de seus trabalhadores; e desenvolvimento de competências para a interprofissionalidade e para o trabalho colaborativo (Brasil, 2018a, 2021).

Importante explicitar que o mote do projeto em tela foi pautado na Interprofissionalidade e no Trabalho colaborativo. A necessidade do desenvolvimento dessa temática nasceu de uma demanda anterior, a partir de relatórios de outras edições do PET-Saúde, que sinalizavam a dificuldade em se promover a educação interprofissional (EIP) e o trabalho colaborativo (TC):

E1. A temática interprofissionalidade vem de uma trajetória de discussões prévias, as outras edições foram fomentando a necessidade de um olhar para o trabalho em equipe, para o diálogo entre diferentes categorias, o pensamento mais voltado para as práticas colaborativas e a interprofissionalidade [...].

Outra iniciativa para o tema compõe uma das ações relacionadas com o Plano de Implementação da EIP, liderado pela Pan American Health Organization (2017, p. 10), para “melhorar a qualidade dos recursos humanos e alcançar a saúde universal”. A EIP e o TC podem auxiliar no enfrentamento de problemáticas relacionadas ao modo histórico e hegemônico de saúde e educação. Assim sendo, a formação e a atuação separadas de profissionais que precisam trabalhar juntos corroboram para a fragmentação do trabalho em saúde, o aumento da hierarquia e relações de poder entre as profissões, a duplicação de procedimentos, o aumento de custos, a diminuição da resolutividade e da qualidade dos serviços (Zirn et al., 2016; Brasil 2018; Freire et al., 2019).

E17. A interprofissionalidade e o trabalho colaborativo servem para unir forças e conhecimentos e fazer a diferença na vida das pessoas. Nenhuma profissão sobrepõe a outra, juntos somamos para o bem-estar do paciente e da sociedade [...].

Levando isso em consideração, a EIP pode ser definida como um método formativo em que dois ou mais cursos da área da saúde estabelecem ações articuladas e compartilhadas de ensino-aprendizagem para que os indivíduos e as profissões aprendam um com o outro e sobre si, algo necessário ao exercício do trabalho colaborativo em equipe e aprimoramento da qualidade dos cuidados e serviços prestados (Almeida; Teston; Medeiros, 2019). Ao passo que para Brasil (2018, p. 46), o TC “deve ser entendido enquanto complementaridade das práticas das diferentes categorias profissionais, atuando de forma integrada, compartilhando objetivos em comum para alcançar os melhores resultados de saúde”.

E11. [...] a interprofissionalidade e o trabalho colaborativo é justamente compor equipes com profissionais variados em que cada um se apropria sobre o que é a prática do outro e consegue entender quais ações podem ser integradas pra que o indivíduo receba uma ação mais completa [...]. É uma articulação dos conhecimentos específicos para o conhecimento construído em conjunto, numa prática colaborativa [...].

No que tange a relação interprofissional e colaborativa vivenciada pelos participantes no decorrer do projeto, os relatos mostraram, no aspecto positivo, proveitosas trocas de conhecimentos, experiências e aprendizagens mútuas entre alunos, docentes e preceptores de diferentes cursos e profissões:

E3. [...] tinham alunos que diziam que através do PET eles conheceram o que faz a enfermagem porque dentro da medicina eles não sabiam [...]. Eu acho que o grande ganho do PET é a possibilidade da gente conhecer e interagir com docentes, trabalhadores da saúde e alunos de outros cursos e profissões. Além disso, a relação interprofissional, no geral, foi bem tranquila.

Um estudo realizado a partir da experiência do PET-Saúde Interprofissionalidade de Fortaleza conflui com tal elucidação ao relatar que o aspecto mais favorável à formação dos participantes foi a vivência constante com trabalhadores do SUS de diversas profissões para o enfrentamento de problemáticas comunitárias. Convergindo com isso, O PET-Saúde Interprofissionalidade de Sobral também aborda que o principal avanço da edição foi a potência de diálogos entre distintas categorias e áreas do conhecimento para a resolução colaborativa de problemas oriundos da saúde (Palácio et al., 2020; Torres et al., 2021).

No entanto, também se constataram dificuldades atreladas à interação pessoal que permearam o convívio interprofissional, como a sobrecarga de atividades dos professores e preceptores, a defasagem de recursos humanos nos serviços envolvidos e a ausência dos docentes nas atividades realizadas nos equipamentos:

E14 [...] eu sinto que a gente não estava no mesmo ritmo, os professores e os preceptores eram muito ocupados. No serviço de saúde há defasagem de recursos humanos, então a gente se sentia deixado de lado porque as preceptoras estavam em horário de trabalho e a unidade precisava funcionar [...]. Todas as vezes que a gente interagia trazia aprendizado, mas era difícil essa interação. Se a participação dos professores da Universidade fosse mais efetiva nas nossas visitas as coisas poderiam ter sido mais fáceis.

O trabalho de Correa (2019) sobre o PET-Saúde GraduaSUS da Universidade Federal de São Paulo aventa que os trabalhadores do SUS e os docentes universitários estão submetidos à tensões decorrentes de suas condições de trabalho, como a sobrecarga de atividades, o acúmulo de funções, a defasagem no número de profissionais, a exigência de metas de produtividade e o corte de orçamentos públicos. Desse modo, Correa (2019), Palácio et al. (2020) e Torres et al. (2021) citam que não há muita governabilidade pelo ritmo acelerado de trabalho na realidade dos serviços de saúde e que a presença dos docentes nos locais foi considerada um fator facilitador de aprendizagem por parte dos preceptores.

Torna-se relevante destacar ainda que o último edital do PET-Saúde, lançado em janeiro de 2022, intitulado “PET-Saúde: Gestão e Assistência”, traz um grande retrocesso no que diz respeito às conquistas angariadas com o PET-Saúde Interprofissionalidade, pois orienta que preceptores ligados ao eixo da assistência à saúde somente acompanhem discentes da mesma categoria profissional nos serviços do SUS:

Nos grupos de aprendizagem tutorial com atividades relacionadas ao eixo da assistência à saúde, cada preceptor será responsável pelo acompanhamento de 4 (quatro) alunos do mesmo curso de graduação na área da saúde, o qual deve ser compatível com a sua categoria profissional (Brasil, p.03, 2022).

A referida determinação diverge, em grande parte, dos princípios e esforços coletivos já promovidos até o momento, por diversas instituições, em torno da EIP e do TC. Para a Pan American Health Organization (2017), os sistemas de saúde não possuem recursos suficientes para financiar todos os profissionais médicos necessários às múltiplas comorbidade existentes. Nesse caso, se o modo de atendimento e de “autoridade” for modificado, os resultados de saúde poderão ser melhorados com custos mais baixos. Assim, a próxima geração de profissionais de saúde precisa ser preparada por meio da educação e da prática clínica interprofissional.

A rigidez curricular universitária: uma tentativa de mudança

O relatório Flexner, publicado em 1910, influenciou profundamente o ocidente, tanto nas práticas, quanto no modelo de educação na saúde, pautado, majoritariamente, na clínica biotecnicista, reducionista, em metodologias tradicionais de ensino e distantes das reais demandas da população. No caso de programas curriculares de ensino, o relatório facultou a herança do currículo rígido, por ciclos, fragmentado em disciplinas e direcionado para cada profissão (Silva et al., 2019).

Diante disso, o mundo tem concentrado cada vez mais esforços no sentido de reflexionar e transformar os serviços de saúde consoante as necessidades sanitárias vigentes e a realidade financeira de cada país. Entretanto, pretender mudanças nessa área sem levar em conta os processos de formação dos profissionais envolvidos se torna algo impensável e inapropriado. A ressignificação da educação de futuros profissionais de saúde perpassa, em meio a outras questões, o alinhamento de currículos de ensino às competências da EIP que visem práticas colaborativas (Pan American Health Organization, 2017).

No caso do Brasil, as DCN se configuram como normas de orientação para a realização dos currículos e projetos político-pedagógicos das instituições de ensino superior. Entre 2001 e 2004, com a participação democrática de diversos atores, foram elaboradas as diretrizes das 14 profissões da área da saúde. Apesar dos avanços contidos nas propostas, como a superação da lógica fragmentada, descontextualizada e passiva de ensino-aprendizagem, em direção à flexibilização curricular, educação interprofissional e metodologias ativas, há o predomínio da falta de clareza e especificidade quanto à constituição de currículos inovadores, para além do modo tradicional de organização em disciplinas isoladas (Brasil, 2017; Costa et al., 2018).

Tendo em vista o que fora mencionado, é possível afirmar que um dos objetivos iniciais do PET-Saúde Interprofissionalidade era o estímulo à mudanças curriculares nos cursos de graduação em saúde, alinhadas às proposições das DCN. A partir disso, o projeto atrelado à UFPR estabeleceu como meta para os grupos tutoriais envolvidos a elaboração de uma proposta educativa, baseada na oferta de disciplinas que fossem compartilhadas entre docentes e discentes de diferentes cursos. O intuito de tal estratégia seria uma tentativa de flexibilizar, inovar e transformar os currículos universitários, muitas vezes, individualistas e engessados, fruto de uma composição universitária segmentada em departamentos, profissões e disciplinas específicas:

E3. [...] seriam disciplinas ofertadas ao mesmo tempo nos cursos de medicina, enfermagem, farmácia, etc. Todos fariam parte da mesma turma. A meta era reformatar as grades curriculares, essa estrutura engessada e individualista de cada curso que não promove o trabalho interprofissional: um professor para o curso ‘x’, para a disciplina ‘x’ e para alunos ‘x’.

Nenhum dos três grupos tutoriais participantes da pesquisa conseguiu concretizar o objetivo das disciplinas compartilhadas. Dentre os motivos impeditivos, foram citados a existência de percalços administrativos junto à Universidade e o advento da pandemia:

E6. Nós não conseguimos provocar mudanças curriculares grandiosas, como promover as disciplinas interprofissionais de forma permanente. A Universidade é muito engessada nas matrizes curriculares dos cursos e a gente ainda não consegue ver a interprofissionalidade acontecendo de fato.

E3. [...] administrativamente o compartilhamento de disciplinas é muito complicado por conta da alocação de carga horária do professor, não é permitida a situação de turmas mistas, então ficou aquela discussão: a disciplina precisa ser, teoricamente, só de alguém (só da medicina, da farmácia ou da enfermagem). [...] a gente não conseguia transformar isso em carga horária para o docente porque a entrada na disciplina teria que ser dividida, e o problema do departamento quando ganha carga horária é a contratação de novos professores. Depois disso veio a pandemia e a gente parou de lutar porque seria uma briga muito grande.

Torres et al. (2021) também apontou em seu estudo sobre o PET-Saúde Interprofissionalidade de Sobral que o projeto pouco conseguiu alterar o modelo fragmentado da composição universitária. Em meio aos fatores que permitem ou interferem a elaboração e implementação de currículos de EIP estão a cultura do profissional, a cultura institucional e a existência de políticas voltadas à força de trabalho e à financiamentos (Pan American Health Organization, 2017).

O modelo de currículo inovador da Universidade Federal de São Paulo da Baixada Santista, por sua vez, demostra ser possível romper com a estrutura hegemônica de fragmentação em disciplinas e perfis profissionais isolados. Na instituição, ocorre um desenho curricular baseado em eixos de formação específicos e módulos comuns interdisciplinares. As turmas são sortidas entre seis cursos de graduação, abarcando educação física, fisioterapia, nutrição, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. A aprendizagem parte, inicialmente, da vivência dos cenários de prática para, então, ocorrer a mediação do professor para a fundamentação teórica. Assim, oportuniza-se, permanentemente, o desenvolvimento da EIP, a delimitação de papéis e responsabilidades profissionais, sem a sobreposição de uma categoria sobre a outra (Rossit et al., 2018).

Como alternativa ao ocorrido, os coletivos desenvolveram outras propostas educativas, mantendo o norte da interprofissionalidade e das práticas colaborativas, dentre elas: um jogo educativo de tabuleiro físico para a aprendizagem da dinâmica da Rede de Atenção à Saúde no SUS, nomeado InterRaps; a capacitação de conselheiros municipais de saúde e educadores populares acerca da temática “Educação Popular, Mobilização e Controle Social na Saúde”; estratégias de educação permanente em saúde para o desenvolvimento de competências ao trabalho interprofissional, colaborativo e formação em preceptoria, voltado aos trabalhadores do SUS; o auxílio na execução de uma disciplina remota de pós-graduação em Políticas Públicas, baseada no uso de metodologias ativas e tecnologias de informação e comunicação; e o desenvolvimento de diversos materiais educativos, físicos e digitais, relacionados à educação e à saúde.

PET-Saúde Interprofissionalidade: potencialidades e desafios

De forma geral, a edição do PET-Saúde Interprofissionalidade UFPR/ SMS Curitiba/ SMS Piraquara, conseguiu promover, enquanto potência, estratégias embasadas em ações intersetoriais, parcerias institucionais e o estabelecimento de redes diversas. Tendo em vista a complexidade do cuidado humano e a necessidade de abarcar indivíduos e comunidades mediante a esfera biopsíquica e social, a efetividade de políticas e programas na saúde dependem, primordialmente, da atuação intersetorial (Brasil, 2021).

[...] a construção da intersetorialidade se dá a partir da articulação de vários setores e envolve distintos atores sociais, tais como: governo, sociedade civil organizada, movimentos sociais, universidades, autoridades locais, setor econômico e mídia, tendo como preceito a reunião de vários saberes e possiblidades de atuação, no sentido de viabilizar um olhar mais amplo sobre a complexidade do objeto, a fim de possibilitar a análise dos problemas e das necessidades (Do Nascimento et al., p. 561, 2021).

Considerando isso, o projeto logrou êxito em fomentar o fortalecimento da tríade ensino-serviço-comunidade ao utilizar a potência parceira da Universidade e o protagonismo de diversos atores envolvidos no processo saúde-doença. Tal integração se faz essencial à construção democrática do SUS, identificação de problemáticas da realidade e elaboração coletiva de ações estratégicas para o sistema:

E2. O PET proporcionou contato e articulação entre a Universidade, a sociedade e os municípios de forma muito grande. A democracia exige esse compromisso mútuo de profissionais da saúde, de gestores, da Universidade, do terceiro setor, de associações, usuários e lideranças comunitárias. Só assim a gente vai poder assumir e construir o SUS que queremos. É essa consciência prática que o PET inaugura e que vem com parcerias institucionais e intersetoriais diversas.

As principais ações realizadas pelos integrantes dos três grupos tutoriais participantes da pesquisa no decorrer dos dois anos do projeto, dentro e fora dos serviços de saúde, podem ser observadas no quadro abaixo (Quadro 2). As atividades foram desenvolvidas de modo interprofissional e intersetorial entre docentes, alunos, trabalhadores de saúde e comunidade, e classificadas conforme a realidade do momento sanitário vivenciado, ou seja, antes do início do momento pandêmico e após o início da pandemia de CO-VID-19.

Ações dos Grupos PET-Saúde Interprofissionalidade
Ações do grupo vigilancia em Saúde
Antes da pandemia Depois do início da pandemia

Rotina de Unidades de Saúde.

Participação em ações de vigilância sanitária, epidemiológica e saúde do trabalhador: inspeções, interdições, notificações, campanhas de vacinação e acompanhamento de doenças

Monitoramento telefônico de casos de Covid-19 em unidades do SUS

Elaboração de materiais educativos digitais

Ações do grupo Redes de Atenção à Saúde
Antes da pandemia Depois do início da pandemia

Rotina de Unidades de Saúde e Laboratório Municipal

Invenção de jogo de tabuleiro físico para estudar Redes de Atenção do SUS (InterReps)

Elaboração de material educativo físico

Monitoramento telefônico de casos de Covid-19 na comunidade UFPR e unidades do SUS

Mudança do jogo de tabuleiro para o virtual

Coleta de depoimentos da trajetória PET-Saúde

Elaboração de materiais educativos digitais

Participação em congressos virtuais

Ações do grupo Educação Popular, Movilização e Controle Social na Saúde
Antes da pandemia Depois do início da pandemia

Rotina de Unidades de Saúde

Colaboração em Conselhos e Conferências de Saúde

Colaboração em eventos de extensão

Elaboração de materiais educativos digitais

Participação em congressos virtuais

Colaboração em disciplina remota de pós-graduação

Colaboração em associações de movimentos sociais

Fonte: elaboração dos autores com base nos dados da pesquisa (2022).

No caso do PET-Saúde Interprofissionalidade desenvolvido pela Universidade Federal de Pernambuco, o projeto contribuiu com o levantamento de problemáticas sanitárias locais e a elaboração de ações focalizadas e mais resolutivas, realizadas a partir da atuação coletiva e intersetorial entre docentes, discentes, lideranças comunitárias e equipe multidisciplinar da Estratégia da Saúde da família. Em contrapartida, o PET-Saúde Interprofissionalidade do município de Mafra relatou a falta de estratégias intersetoriais para a obtenção de melhores resultados na vigilância em saúde, visto que o controle de doenças e agravos tende a ser aprimorado na medida em que conhecimentos específicos e profissionais de diferentes categorias são incluídos nas intervenções propostas (Engel et al., 2020; Do Nascimento et al., 2021).

Outra potencialidade do projeto reside em uma formação inovadora que o PET-Saúde pode proporcionar aos aprendizes, para além da trajetória acadêmica convencional e de metodologias de ensino tradicionais, corroborando para o desenvolvimento de futuros profissionais a partir de um viés holístico, crítico, proativo e resolutivo em relação aos determinantes de adoecimento e cura da população. Somando-se a isso, a descoberta, vivência e conscientização sobre a importância do papel do SUS e sua consolidação para a sociedade brasileira:

E2. Essa é uma formação que transborda a formação tradicional de consultório fechado para pensar a ação em rede, pois o adoecimento tem uma interface extremamente grande, é multifatorial e a gente tem que ter pessoas formadas para atuarem na multifatorialidade do processo de saúde-doença. Além disso, é relevante falar da importância de se desenvolver metodologias ativas vinculadas a programas, cursos de graduação, pós-graduação.

E16. Eu gosto muito do SUS, eu digo que no PET eu descobri o SUS e espero que assim que eu me formar eu possa trabalhar na saúde pública. [...] o meu curso ainda não tem uma matéria específica sobre o SUS, agente vê saúde pública, vigilância sanitária, mas são coisas muito teóricas, com o PET eu tive a oportunidade de fazer visitas no campo.

O PET-Saúde Interprofissionalidade das Universidades Federais da Bahia e do Pará também abordam a potência do programa enquanto indutor da reorientação da formação na saúde ao se pautar nas MA de ensino-aprendizagem para o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo, da vivência concreta da realidade e, assim, de aprendizagens significativas. Enquanto estratégias de MA utilizadas, os estudos citam a aprendizagem baseada em problemas (ABP); a análise de casos reais; o role-playing; a sala de aula invertida; as oficinas temáticas e integradas; os mapas mentais e conceituais; a elaboração de cordel, jogos e podcast; e uso de tecnologias de informação e comunicação (Moura et al., 2019; Alencar et al., 2020).

Em se tratando dos principais desafios atrelados ao projeto, foram citados: o atraso recorrente no pagamento das bolsas dos participantes; a dificuldade de deslocamento físico para campos de atuação, por vezes distantes; a dificuldade de conciliação do projeto com a carga horária extensa de alguns cursos de graduação; a incompatibilidade de horários entre os participantes para reuniões presenciais; a não inclusão do PET no escopo da pós-graduação; e a interrupção contínua dos projetos por parte do Ministério da Saúde, prejudicando a execução de atividades à longo prazo.

E1. Acho que a gente teve muita dificuldade no pagamento das bolsas porque sempre atrasou, isso impactou, principalmente, na vida dos estudantes que dependiam do dinheiro. [...] isso incomodou durante quase toda a trajetória do projeto.

E3. Eu acho que grande parte dos alunos envolvidos tiveram problemas para conciliar com a carga horária extensa das grades curriculares dos cursos da saúde [...].

E5. [...] esses hiatos de vai e volta, essas interrupções, não são boas. O ideal é que fosse um programa permanente, a interrupção e a incerteza prejudica o que a gente vem construindo.

Torres et al. (2021) também aponta a incompatilibidade entre a extensa carga horária dos cursos de graduação da saúde e as atividades demandadas pelo programa. Para Brasil (2021), dentre as principais barreiras que dificultam o pleno desenvolvimento dos projetos estão a ausência de um cronograma que sistematize o pagamento das bolsas por parte do governo e o período de tempo reduzido que é ofertado para a execução das edições.

O PET-Saúde e a vivência do momento pandêmico

O advento da pandemia trouxe, ao mesmo tempo, desafios e aprendizados aos integrantes do projeto:

E2. A distância foi um grande aprendizado, sem olhar no olho, sem essa presença que a gente está acostumado, uma grande dificuldade de um lado, mas um aprendizado do outro porque possibilitou várias interlocuções à distância [...].

E5. A parte boa é que a gente conseguiu enfrentar esses desafios (da pandemia) com um grupo coeso, com apoio e com proatividade de todos [...].

Os efeitos do momento pandêmico alteraram significativamente a dinâmica do projeto e os participantes tiveram que ser resilientes e criativos para reformular a proposta de ensino-aprendizagem baseada na interação face-a-face e na presença física dos serviços de saúde, desenvolvendo novas estratégias que também contemplassem as realidades e demandas do SUS. Com isso, ampliou-se a utilização das tecnologias de informação e comunicação e a realização de ações à distância para dar continuidade às propostas e objetivos centrais do programa:

Sobre o impacto da COVID-19 no PET-Saúde, parece ainda ser precoce fazer qualquer análise mais rigorosa. No entanto, a resiliência por parte dos participantes desta edição do programa sobressai-se como um efeito que pode sinalizar para a reorientação do processo de integração ensino-serviço-comunidade e a proposição de alternativas de aprendizagem mistas, vinculando a tecnologia à realidade do trabalho em saúde para o desenvolvimento do efetivo aprender junto para trabalhar junto (Brasil, p. 51, 2021).

Desse modo, o isolamento social vivenciado ocasionou maior flexibilidade de horários para o desenvolvimento das atividades atreladas ao PET-Saúde, a necessidade do uso de plataformas de encontros virtuais e a produção de materiais educativos digitais. As principais ações executadas durante o período pandêmico estiveram relacionadas com o telemonitoramento dos casos de COVID-19; a elaboração de produtos digitais, como jogo virtual, e-books, vídeos, lives, podcast, postagens em redes sociais, trabalhos científicos; capacitações e aulas remotas; e a participação em eventos e congressos virtuais:

E7. A gente teve que se reinventar, descobrimos um caminho que talvez seja sem volta: que são as redes sociais, as reuniões on-line, a importância do e-book, do arquivo em PDF bem feito e bem divulgado em redes sociais. Produzimos muitos materiais educativos e científicos para serem compartilhados [...]. [...] e a partir do momento que a gente passou para encontros on-line, os horários se tornaram mais flexíveis para realizar as atividades, pela ausência do comprometimento com o deslocamento.

Para Crivellaro et al. (2020), dentre os benefícios do momento pandêmico estão a maior flexibilidade de horários; o menor risco à acidentes e violências, pela ausência de deslocamento para reuniões e campos de atuação; e o desenvolvimento de novas habilidades com os recursos tecnológicos. Para Brasil (2021), muita produção digital ocorreu nessa etapa do programa por todo o Brasil, como a elaboração de redes virtuais, cursos de educação a distância, eventos virtuais, webconferências, vídeos, artigos científicos, entre outros.

No tocante aos desafios acarretados pela pandemia, foram citados pelos participantes da pesquisa a ausência de interação física entre as pessoas e da atuação direta nos serviços de saúde:

E1. A vivência de estar dentro do serviço é uma perda, de viver a rotina, o território, isso é de uma riqueza muito grande. Não pudemos mais nos reunir pessoalmente, nem jogar o jogo de tabuleiro físico. Foi algo que, infelizmente, a gente não teve muita governabilidade.

Para Crivellaro et al. (2020), Iguarino et al. (2020) e Chriguer et al. (2021), a ausência de interação física entre alunos, professores, profissionais de saúde e comunidade nos ambientes laborais do SUS e na Universidade, assim como a pouca observação da linguagem corporal das pessoas, foi uma perda irreparável para o crescimento dos participantes, trocas de experiências e vivências do trabalho interprofissional e colaborativo.

Outras dificuldades atreladas à vivência pandêmica residiram na mudança do foco e planejamento das atividades que vinham sendo desenvolvidas presencialmente para a realidade virtual; a falta de acesso às tecnologias digitais; e a sobrecarga dos preceptores atuantes na linha de frente de combate à COVID-19:

E4. [...] a gente tinha todo um projeto estruturado com ações in loco e a gente teve que vir para o home office e isso atrapalhou, [...] principalmente a nossa interação com as preceptoras que acabaram atuando na linha de frente da pandemia, muitas se afastaram também por esgotamento mental.

E2. A gente não conseguiu muito acesso ao usuário diretamente por motivo de infraestrutura mesmo, pela falta de celular, internet boa, para que a gente consiga estar nesses espaços [...].

Outros autores também citaram como empecilhos durante o percurso pandêmico a deficiência de acesso e conhecimento aos recursos tecnológicos; a suspensão de atividades presenciais e a readequação para a esfera digital; e o cenário entristecedor vivenciado pelos preceptores atuantes na linha de enfrentamento da COVID-19, o que impediu a realização de várias ações (Crivellaro et al., 2020; Iguarino et al., 2020; Chriguer et al., 2021).

Considerações Finais

O Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde se configura em meio a um cenário de decisões políticas que pretendem a indução da formação de recursos humanos voltados para o SUS e para as demandas da sociedade brasileira. Tal direcionamento emergiu mediante a necessidade do desenvolvimento de profissionais de saúde críticos, humanizados e aptos à atuação em diferentes fatores condicionantes e determinantes do processo saúde-doença de indivíduos e populações.

Essa perspectiva pretende não apenas uma estruturação pedagógica inovadora de ensino na saúde, mas também a produção de uma nova concepção epistemológica de agir, fazer, ensinar e aprender saúde de maneira ampliada e universal, rumo à construção de uma política de desenvolvimento em recursos humanos para o SUS, agenda ainda não finalizada no país, e à consolidação desse sistema, seus princípios e diretrizes. Assim sendo, a educação e a prática clínica nesse escopo devem transpor o modelo biomédico, unicausal, fragmentado e passivo, passando a compor um exercício de trabalho-aprendizagem proativo, compartilhado, colaborativo, resolutivo e com a diminuição da hierarquia entre as profissões.

Nesse sentido, é possível afirmar que a edição PET-Saúde Interprofissionalidade conseguiu atingir seu objetivo principal ao desenvolver nos participantes competências para o trabalho interprofissional e colaborativo em saúde, seja pela realização de diversas ações compartilhadas, consoante as demandas do SUS, seja pela configuração de vivências interprofissionais proporcionadas pelo projeto. Além disso, o programa conseguiu êxito em promover atuações intersetoriais e maior integração entre a tríade ensino-serviço-comunidade, assim como a formação de profissionais conscientes da importância do SUS, do cuidado integral, humanizado e ampliado na saúde e na doença, para pessoas e coletividades.

Em contrapartida, o projeto pouco conseguiu alterar a rigidez e o isolamento das matrizes curriculares da Universidade, fruto de uma herança universitária fragmentada em departamentos, disciplinas e profissões, fator este que desafia a concretização de políticas públicas voltadas à formação de recursos humanos para o SUS, ao trabalho interprofissional e colaborativo. Portanto, são sugeridos mais estudos com a finalidade de elucidar e esgotar tal lacuna. Outra limitação do trabalho reside na seleção da amostra de entrevistados, visto que apenas três dos cinco grupos tutoriais de aprendizagem participaram da pesquisa.

Para finalizar, pode-se referir que a pesquisa desenvolvida aprofundou temas relevantes para a área da educação na saúde e para a sociedade em si na medida em que mostra a potencialidade de políticas que articulam de forma parceira a Universidade, os serviços de saúde e a comunidade. Além disso, formas inovadoras de aprender e ensinar, para além do método tradicional de ensino, ao alinhar a teoria à realidade de trabalho no SUS e às necessidades sociais em saúde. Assim sendo, a existência e a continuidade de programas como o PET-Saúde se faz muito importante para a reorientação do cenário da formação em saúde no país e para a construção de uma política intersetorial de desenvolvimento em recursos humanos para o SUS.

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