- Fronteira;
- Decolonialidade;
- Consciência mestiça;
- Gloria Anzaldúa;
- Relações de poder.
A presente resenha tem como objetivo principal compreender o conceito de consciência mestiza trazido por Gloria Anzaldúa em sua obra Borderlands/La Frontera. The New Mestiza mediante a uma abordagem decolonial crítica dos saberes eurocêntricos, hierárquicos e hegemônicos. Neste sentido, são analisados os aspectos contraditórios e híbridos da fronteira por meio das relações de poder, e a reprodução e manutenção destas relações no cotidiano latino-americano. Nesta resenha, são apresentadas reflexões a partir de diferentes referenciais teóricos em conjunto a uma específica canção do grupo porto-riquenho Calle 13, pretendendo contribuir com elementos que problematizam essa colonialidade e que preponderam o reconhecimento dos saberes marginalizados, originários e fronteiriços.
O texto de Gloria Anzaldúa assume características de uma autobiografia onde ela relata sobre suas perspectivas epistemológicas que foram sendo construídas sob influência da fronteira, esta que é tanto geográfica, quanto étnica, linguística como também de gênero. A autora utiliza de diversas ferramentas textuais para compor seu texto, desde linguagens históricas, poéticas, narrativas cosmológicas e memórias ancestrais. Nesses processos de hibridismo cultural a autora enfatiza o surgimento de uma nova subjetividade que não é branca, nem indígena, nem hispânica, mas mestiça, e que advém de um contexto cultural e social específico fronteiriço. Por isso, ela cria um discurso que aponta para a valorização da mulher mestiça lésbica, objetivando consolidar essa identidade mestiça que aflora da fusão de sua própria cultura com a hegemônica, porém que se vê excluída pelo poder dominante.
Apresenta-se de início um panorama histórico da criação dos territórios fronteiriços durante as guerras e sua experiência com a população mexicana que ficou do outro lado da fronteira, sobretudo mostra-se esse processo como um ciclo ondulante e não como dentro de uma narrativa linear. Mediante a concepção de José Vasconcelos (1926) sobre a raza cósmica a escritora desenvolve sua noção de consciência mestiza, partindo do príncipio do autor de uma raça mista que é resultante de um composto não hegemônico de todas as raças, Anzaldúa traça um paralelo às pessoas que vivem nas fronteiras, e atuam como fronteiras uma vez que tem contato e que são produtos de várias culturas, raças e etnias, portanto a consciência mestiza é uma consciência híbrida fronteiriça.
Dessa maneira, a consciência de fronteira conduz a uma epistemologia de “entre-lugar”, ou a um “não-lugar”, onde ocorre transferências de valores socioculturais e espirituais que, ao contrário de uma idéia de limite e fixa, é um espaço caracterizado por fluidez e hibridação. Neste sentido o lugar de fronteira se recusa às definições pretendidas pela cultura hegemônica, e a consciência mestiza necessita aprender como harmonizar dentro de si essa sua composição múltipla, percebendo suas contradições e ambiguidades e incluindo estas, em vez de excluir, no seu processo híbrido.
A construção da consciência mestiza empreendida por Anzaldúa está fortemente vinculada à ideia de sobrevivência, visto que a existência desta e de sua cultura irá depender de sua capacidade de adaptação e transformação. Sendo assim, a nova mestiça terá de estar equipada para alternar seu discurso entre os diferentes códigos culturais, muitos deles em conflito dentro dela, consciente de que através da aceitação das diferenças, ela se completa e existe. Trata-se, afinal, do reconhecimento dos “entre-lugares” e “não-lugares” como parte do segmento que forma a identidade da sujeita fronteiriça
Portanto, a obra de Anzaldúa possui um caráter essencialmente intercultural, que reflete sobre a cultura e a identidade mestiça e fronteiriça, um dilema muito complexo e muito pertinente atualmente, e acaba por concluir que é necessária uma nova forma de epistemologia, na qual “devemos adquirir consciência da nossa situação antes de podermos efetuar mudanças internas, que, por sua vez, devem preceder as mudanças na sociedade.” (p.714) Há sem dúvida uma relação intrínseca entre a noção de consciência mestiza trazida por Gloria Anzaldúa e a colonialidade, conceito o qual a se discute aqui sob a perspectiva do autor Aníbal Quijano (1997) onde a colonialidade faz referência às manutenções do colonialismo mesmo depois que ele “desaparece formalmente” do território, como por exemplo o racismo que é uma herança colonial, bem como certos modos de paternalismo.
Em torno dessa construção mental que hoje chamamos raça se configura um conjunto de mecanismos e de formas de dominação social, começando provavelmente pela mais antiga, a dominação entre sexos (posteriormente nomeado de gênero). No processo violento de dominação colonial se impõe a ideologia cristã hegemônica da ideia de um único deus que legitima uma ordem vertical, repressiva e patriarcal sobre colonizados/as. Diante disso, toda mulher é, neste momento, por definição inferior a todo homem, até o surgimento da ideia de raça. A raça então, vai classificar pessoas e povos como naturalmente superiores, e naturalmente inferiores, a partir daí toda mulher de raça branca será por definição superior a todo homem de raça não branca.
Dessa maneira, o cristianismo se tornou o instrumento de colonização mais poderoso dessa “missão civilizatória”, pois usufruiu da normatividade para conectar gênero, raça e civilização desempenhando no apagamento das práticas nativas locais. A socióloga María Lugones (2014) traz a referência de colonialidade como um processo de desumanização e sujeitificação que torna o/a colonizado/a inferior um ser humano, ou seja, mulheres negras por definição não estariam nem inseridas no conceito de gênero (mulher) e nem no conceito de raça (negro) por sequer serem vistas dentro de sua humanidade.
Compreendendo, portanto, que existe no mundo moderno a colonialidade do saber e do poder, e, reconhecendo que há uma profunda negligência de outros saberes e culturas não hegemônicos rejeitados pelo pensamento eurocêntricos, podemos mensurar a fronteira como um espaço de luta e resistência entre o pós-colonialismo e a colonialidade. Logo, o pensamento fronteiriço pode ser entendido como uma ferramenta de decolonização intelectual, política e econômica já que este atua como de “forma de estar nas duas margens ao mesmo tempo” (Anzaldúa, 1987, p. 706), no entanto sem que seja apenas uma mera junção de elementos opostos, onde obviamente a hegemonia se sairia. Por isso, Anzaldúa reforça que a consciência mestiza atua de uma maneira em que esta não é a soma das partes separadas, mas uma consciência contínua e flexível de diálogo e confronto “que segue quebrando o aspecto unitário de cada novo paradigma” (Anzaldúa, 1987, p. 707)
A problemática em torno de como essa nova consciência pode lidar com as contradições e ambiguidades das diversas partes que a compõem retornam a própria característica da fronteira onde a “rigidez significa morte. apenas mantendo-se flexível é que ela consegue estender a psique horizontal e verticalmente” (Anzaldúa, 1987, p. 706), nesse sentido é preciso desenvolver uma identidade plural e operar de um modo pluralístico, não apenas sustentando as contradições, mas também transformando essas ambivalências.
A ideia de consciência mestiza trazida pela escritora atua como uma prática e saber decolonial que procura transcender a naturalização de determinadas hierarquias (territoriais, raciais, epistêmicas, culturais e de gênero), produzindo uma nova epistemologia subalternizada de conhecimentos, experiências e formas de vida daqueles/as que são explorados/as. Nessa mesma perspectiva, o grupo Calle 13, acompanhado das participações de Totó la Momposina, Susana Baca e Maria Rita desenvolveram na letra de Latinoamérica (2010) um discurso crítico que percorre desde a história de exploração colonialista da parte latina da América pelos europeus, até os elementos mais sutis, naturais e poéticos de resistência que sustentam a existência dessa parte do continente.
As personificações presentes na letra compõem uma síntese das complexidades e das contradições que projetaram e construíram os povos e os espaços latino-americanos, enquanto as estrofes apresentam a autodefinição do latino/a americano/a, o refrão é o espaço em que ocorre a crítica ao “tu” e à postura materialista deste. Ainda no refrão alega-se que o “tu” mantém apenas essa relação comercial com o “eu”, mas que há coisas que este “tu” não pode incluir em seu comportamento, elementos que não são compráveis, e que são os mesmos responsáveis por revigorar e fortalecer a América Latina.
Desta forma, cria-se um paralelo entre os aspectos geográficos e os aspectos culturais: o povo latino-americano seria resistente, pois teria aprendido com a espinha dorsal presente em seu território: a cordilheira dos Andes. Contudo, a ideia a ser passada pela música não é que somos filhos/as de uma pátria ou outra, e sim de demonstrar que neste espaço somos filhos/as de tudo, de cada costume, de cada povo, crença, e é toda essa mistura que nos acolhe, alimenta e direciona à o surgimento dessa consciência fronteiriça. “Soy América Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina” (CALLE 13, 2010).
Por fim, essa perspectiva de decolonização trazida pelo grupo Calle 13 nos remete ao mesmo lugar de fronteira que não se reduz a compreensão de delimitação do espaço territorial, mas atua como uma epistemologia de encontro de vários tempos e povos. Neste sentido, consideramos a fronteira e a consciência mestiza trazida por Anzaldúa como meio de se romper com as certezas naturalizadas, com a colonialidade. O pensador Walter Mignolo (2017, p. 15) afirma: "Desprender-se significa não aceitar as opções que lhe brindam. Não pode evitá-las, mas ao mesmo tempo não quer obedecer. Habita a fronteira, sente na fronteira e pensa na fronteira no processo de desprender-se e re-subjetivar-se”. Em outras palavras, nossos questionamentos devem buscar englobar formas de enunciar a vida e se relacionar que mudem também o mapa do que é pensável, perceptível e, portanto, possível em sociedade, buscando a equidade e a diversidade como princípio dessa mudança. Temos que responder a esse corpo social a que pertencemos.
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Calle 13. (2010). Latinoamérica (canción). Entren los que quieran. https://open.spotify.com/track/1xuYajTJZh8zZrPRmUaagf?si=d816a1f51b0042c3
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Lugones, M. (2014) Colonialidad y género: hacía un feminismo decolonial. Em W. Mignolo, (comp.), Género y descolonialidad. Del Siglo.
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Mignolo, W. (2017) Desafios decoloniais. Em W. Mignolo, Epistemologias do Sul: pensamento social e político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia, 1(1).
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Quijano, A. (1997) Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. Em Anuario Mariateguiano, Amauta, IX, (9).
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Vasconcelos, J. (1926). La Raza Cósmica. Misión de la raza iberoamericana. A. M. Librería.
- » : 27/04/2023» : 2022Jan-Jul