O processo de transformação do Estado boliviano iniciado em 2005 reuniu de forma inédita novos setores sociais em torno da institucionalidade estatal, tais como os setores indígenas e campesinos, que passaram a serem reconhecidos como forças sociais decisivas na cena política boliviana. Em meio a essa reorganização de forças sociais revelaram-se novas narrativas sobre a luta política no país em questão, que ressignificaram certas práticas sociais. Na conjuntura de ascensão desses novos grupos, enquanto a luta entre a antiga classe dominante e a classe subalterna era uma questão pendente, na cena política o discurso “plurinacional” já se desenhava como um possível fator de unidade nacional. Este artigo propõe discutir a representação ideológica da luta política no referido discurso plurinacional, na conjuntura de ascensão do Movimiento al Socialismo (MAS) à institucionalidade estatal na Bolívia. Para isso, o artigo fundamenta-se na Análise do Discurso - de origem francesa - e examina as sequências discursivas extraídas das manifestações públicas do então presidente Evo Morales durante as cerimônias de posse, em Tiahuanacu e no parlamento boliviano, ambas em 2006. Conclui-se que a representação da luta política no discurso plurinacional se constitui por elementos que remetem à exclusão e submissão das classes subalternas na história do país, e simultaneamente, à ressignificação da luta política das classes subalternas.
The process of transformation of the Bolivian State initiated in 2005 brought together in an unprecedented way new social sectors around the state institutionality, such as the indigenous and campesino sectors, which came to be recognized as decisive social forces in the Bolivian political scene. In the context of this reorganization of social forces, new narratives about the political struggle in the country in question were revealed, which gave new meaning to certain social practices. At the time of ascension of these new groups, while the struggle between the former ruling class and the subordinate class was a pending issue, in the political scene the "plurinational" discourse was already being designed as a possible factor of national unity. This article proposes to discuss the ideological representation of political struggle in the aforementioned plurinational discourse, at the time of ascension of the Movimiento al Socialismo (MAS) to state institutionality in Bolivia. To do so, the article is based on Discourse Analyses - of French origin - and examines the discursive sequences extracted from the public manifestations of former president Evo Morales during the inauguration ceremonies, in Tiahuanacu and in the Bolivian parliament, both in 2006. It is concluded that the representation of the political struggle in the plurinational discourse is constituted by elements that refer to the exclusion and submission of subaltern classes in the history of the country, and simultaneously, to the re-signification of the political struggle of subaltern classes.
- Estado;
- Bolívia, discurso plurinacional, ideologia, luta política.
- State;
- Bolivia, plurinational discourse, ideology, political struggle.
Introdução
A transformação do Estado na Bolívia, iniciada nos anos de 2005, foi um processo político marcado pela multiplicidade de setores sociais antes excluídos da política nacional, tais como os movimentos indígenas e cocaleiros, que ascendem à institucionalidade do Estado após a vitória eleitoral do partido Movimento al Socialismo (MAS). O então presidente eleito Evo Morales representava esse movimento popular, e por meio de uma articulação com o partido e setores da classe média urbana ele foi capaz de se estabelecer no poder e consolidar uma reforma do Estado, que modificou fundamentalmente as instituições ao aprovar uma nova constituição e ao estabelecer um Estado Plurinacional.
Junto às referidas transformações jurídico-políticas modificou-se também a organização social em torno de uma ideologia “plurinacional”, que se constituiu não apenas em termos jurídicos, mas também em práticas discursivas na cena política. A constituição de um discurso “plurinacional” revelou também novas narrativas sobre a luta política, assim como uma inédita e conflitiva composição de classes e de grupos sociais no país. Nessa conjuntura de ascensão desses novos grupos, enquanto a luta entre a antiga classe dominante e a classe subalterna era uma questão pendente nos âmbitos econômicos e políticos, o discurso plurinacional se desenhava como um possível fator de unidade nacional e como uma nova representação ideológica dessa luta política.
Partindo desse tensionamento entre a composição de classes e a representação discursiva da luta política na institucionalidade estatal, este artigo propõe discutir a representação ideológica da luta política no discurso plurinacional, na conjuntura de ascensão do MAS à institucionalidade estatal na Bolívia, a partir de 2005.
Para isso, o artigo fundamenta-se na Análise do Discurso - de origem francesa - e examina as sequências discursivas extraídas dos pronunciamentos do então presidente Evo Morales durante as cerimônias de posse, em Tiahuanacu, e no parlamento boliviano, ambas em 2006. A fonte dos pronunciamentos em questão foram websites oficiais que após a deposição civil-militar do presidente Evo Morales em outubro de 2019 foram retirados do ar. No início de 2020, os referidos sites voltaram a funcionar sem constar, entretanto, todo o material por nós coletado. Em razão disso, os endereços eletrônicos indicados direcionam à um site alternativo às páginas oficiais que serviram originalmente de fonte dos discursos aqui trabalhados.
No que diz respeito à organização deste artigo, ele se constitui por três seções, além de uma introdução e de uma conclusão. Na primeira seção, realiza-se uma breve contextualização histórica sobre a conjuntura boliviana. Em seguida, o artigo discute a reorganização do poder político no país a partir da ascensão masista. Por fim, discutir é discutida a representação ideológica da luta política presente no discurso plurinacional.
O contexto de ascensão do partido Movimento al Socialismo (2005-2009)
Em 2005, como resultado de um período de turbulência social, crise institucional, e de enfraquecimento do projeto neoliberal na Bolívia, foram convocadas eleições presidenciais, das quais Evo Morales saiu vencedor, tendo como principais propostas a nacionalização dos hidrocarbonetos e a convocação de uma assembleia constituinte para a “refundação do país”. Evo Morales foi eleito o primeiro presidente de origem indígena do país junto a Álvaro García Linera, intelectual ex-membro do Ejército Guerrillero Tupac Katari (EGTK). Essa composição foi possível eleitoralmente em razão do aglutinamento de diferentes setores populares, base para a criação do partido Movimiento al Socialismo - Instrumento Político para la Soberanía de los Pueblos (MAS-IPSP), fundado em 1995.
O nascimento do referido partido e sua ascensão a partir da articulação entre sindicatos e organizações indígenas demonstra que as mobilizações antineoliberais do início dos anos 20001 não ocorreram de forma repentina, mas resultaram de um processo de longo prazo, o que, naquele período, resultou na união entre os movimentos campesinos, sindicatos e organizações indígenas. Essa pauta comum foi impulsionada prioritariamente por um rechaço às políticas neoliberais no país, mas se unificou na medida em que essas políticas afetaram demandas dos povos originários, como a defesa da natureza e sua autodeterminação política, regional e cultural. Sobretudo nos conflitos em torno do gás boliviano, essas pautas se vinculavam a um discurso nacional-popular, desafiante do discurso neoliberal do período anterior.
A unidade que se configurou em torno da eleição de Evo Morales significou uma reorganização das classes populares em torno da institucionalidade que se viabiliza através do aglutinamento de diversos setores subalternos que ganhavam força no cenário político-eleitoral ao protagonizarem as mobilizações no início dos anos 2000. Essas forças sociais, contudo, são resultado de um redirecionamento dos setores populares à institucionalidade que ocorre já no final dos anos noventa, quando diversas organizações populares e novos partidos foram formalizadas ao sistema liberal representativo. O exemplo mais relevante é o da frente Esquerda Unida (EU),2 uma fração do partido que seguiu fiel a Evo Morales após sua expulsão da ASP, e foi um movimento decisivo para a eleição Evo Morales e mais três deputados em 1997. Foi essa fração do partido que posteriormente deu origem ao, MAS-IPSP.
O Pacto de Unidad e a assembleia constituinte
Após a vitória eleitoral do MAS e o fortalecimento das organizações subalternas no cenário do país, era chegado o momento de repensar, a partir do bloco subalterno na assembleia constituinte, o novo projeto plurinacional. Nesse contexto, o Pacto de Unidad3 (PU) surgiu como uma forma de organização para a construção de uma agenda comum entre indígenas, camponeses e trabalhadores urbanos aliados ao MAS, para preparar uma proposta conjunta a ser apresentada na assembleia constituinte. O PU teve papel fundamental na articulação entre as forças sociais que levaram à aprovação da nova constituição (Tapia, 2010) e estava composto, em 2007, pelas principais organizações sociais bolivianas: a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Campesinos da Bolívia (CSUTCB), a Confederação Sindical de Comunidades Interculturais da Bolívia (CSCIB), a Confederação Nacional de Mulheres Campesinas Indígenas Originarias da Bolívia “Bortolina Sisa” (CNMCIOB - “BS”), a Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (CIDOB) e o Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu (CONAMAQ), além de outras organizações aliadas de menor projeção nacional. Em síntese, a ideia da formação do Pacto de Unidade era a formação de um projeto de Estado Unitário Plurinacional Comunitário, baseado no reconhecimento constitucional de povos originários e no direito às suas autonomias (territoriais, culturais e políticas), reconhecendo assim, portanto, não apenas a diferença formal entre indivíduos, mas também entre as culturas capitalistas e pré-capitalistas (originárias). Conforme relata Garcés (2010), o paradigma plurinacional, como concebido pelo PU, buscava promover formas produtivas e organizacionais indígenas e campesinas em conjunto a uma economia e sociedades plurais.
As propostas resultantes dessa aliança do MAS com os setores campesinos e indígenas foram levadas à assembleia constituinte, mas não foram aprovadas integralmente devido às disputas internas no MAS e, também, em razão das negociações com a oposição no parlamento, que em parte representava às antigas frações deslocadas do poder nacional. No momento pré-constituinte, o MAS se deparou com um cenário parlamentar bem distinto dos consensos antineoliberais do período insurgente de 2000 e 2003. Ainda que o partido possuísse maioria do congresso,4 sequer alcançou os dois terços necessários para a aprovação das leis que viabilizavam a assembleia. O impasse foi resolvido por meio de um acordo que vinculava a aprovação de uma lei que obtivesse apenas a maioria simples por meio de referendo popular. A partir daquele momento, já em 2007, as tensões centralizaram-se no interior da assembleia constituinte, onde os setores da burguesia agroexportadora da região de Media Luna5 exerceram forte influência. Após a derrota nas eleições de 2005, o partido PODEMOS - o principal articulador das demandas daquela burguesia no cenário constituinte - passou a defender as principais pautas ligadas à autonomia regional dos departamentos da Media Luna (Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija). O debate entre a adoção de autonomias indígenas ou das autonomias regionais refletia diretamente na oposição entre o interesse nacional e regional, na medida em que o tema estava diretamente ligado à distribuição de renda dos recursos naturais, o alcance da reforma agrária e o modelo de intervenção do Estado na economia.
Durante o período de 2007-2008, próximo à aprovação do texto constitucional, a instabilidade política se fazia ainda presente. A reconfiguração do poder no período constituinte apontava para uma divisão clara quando se tratava do apoio ao projeto popular. De um lado, a população das regiões andinas apoiava o governo do MAS e, por outro, em oposição, estavam as forças políticas nas regiões leste do país. A região da Meia-Lua tinha recursos e uma capacidade de organização muito grande, já que representava os interesses transnacionais do gás e os da burguesia agroexportadora, que fora, em um primeiro momento, deslocada do poder no início do período pós-neoliberal (Fuser, 2016; Pannain, 2018). Essas forças políticas se manifestaram não apenas no espaço da assembleia constituinte, mas também agiram com uma onda de violência sobre os indígenas pelas ruas do país. No ápice do conflito, grupo paramilitares e fascistas espancaram indígenas nas ruas de Sucre e frequentemente os submetiam a humilhações públicas.6 Essa força política repressiva foi capaz de paralisar os trabalhos da constituinte por quase um ano.
Após o reinício dos trabalhos na assembleia constituinte, as forças sociais que negociavam o texto constitucional estavam em conflitos cada vez mais acirrados: havia o impasse entre o MAS e a oposição e as divergências sobre as pautas prioritárias entre as frações indígenas e as camponesas (Harten, 2011). A solução levada a cabo pelo MAS foi a de um novo acordo com a oposição e com parte da burguesia tradicional, que resultou em prejuízo às demandas indígenas de autonomia e cogoverno. Tal acordo foi definido por García Linera (Natanson, 2007, p. 167) como uma estratégia de distribuição pactuada do poder:
Desde que llegamos al gobierno, hemos definido una estrategia de distribución pactada del poder. Lo que Bolivia está atravesando hoy es, en esencia, un proceso de amplia y generalizada lucha y redistribución del poder. Es algo que va más allá de un gobierno. Y la historia nos enseña que la lucha por el poder puede tener tres desenlaces clásicos. Que el sector emergente desplace directamente, mediante cualquier medio posible, al bloque anterior. Que este bloque de poder antiguo logre derrotar, contener, cooptar o aplastar al bloque emergente. O que entre ambos se logre redistribuir el poder. Como gobierno, hemos optado por la tercera opción. Apostamos a un proceso de redistribución pactada del poder con un nuevo núcleo articulador: el movimiento indígena.
Esse acordo, contudo, garantiu maior autonomia departamental - como demandado pelos setores da burguesia agrária exportadora - e pendeu para uma maior dominância e articulação da burguesia. O direito à autonomia indígena foi reduzido (Tapia, 2014) e, por consequência, o “bloco indígena articulador” a que se referiu o ex-presidente não conseguiu se impor. O resultado do conflito entre as frações de classe subalternas também foi desfavorável às demandas indígenas, já que a fração do campesinato apoiava medidas mais moderadas de reforma, voltadas à redistribuição de renda e políticas sociais. Como resultado global dos acordos do governo com os partidos de oposição, foram privilegiados o regionalismo às autonomias indígenas e o foco em políticas redistributivas em detrimento do “plurinacionalismo”, privilegiando os setores camponeses e minando os direitos indígenas (Andreucci, & Radhuber, 2017).
Mesmo tendo conseguido diversas vitórias em relação às demandas da região da Meia-Lua, os movimentos separatistas insistiram na desestabilização do governo instituído. As manifestações autonomistas em diversas cidades do leste boliviano se intensificaram e culminaram, em 2008, na realização de referendos pela autonomia na região. A aprovação pelas autonomias departamentais foi massiva, contudo, o referendo não era um procedimento constitucional, já que não contava com a validade jurídica e aprovação do parlamento, como previa o texto constitucional. Ainda assim, os referendos serviram para a estratégia dos setores autonomistas e separatistas porque apenas a realização desses procedimentos mobilizou politicamente todo o país, precipitando diversos confrontos entre apoiadores do MAS e os autonomistas (Fuser, 2016). Como uma tentativa de sanar os conflitos, o governo convocou um referendo nacional revogatório de mandato, em agosto de 2008, pelo qual os mandatos de Evo Morales, do vice-presidente Álvaro García Linera e dos governadores estaduais foram postos à prova. Como resultado do referendo, o governo recebeu o apoio massivo da população, com 68% dos votantes. Mesmo com o fortalecimento do MAS no campo eleitoral, o movimento autonomista da Meia-Lua começou a contestar a legalidade e o sistema eleitoral, em uma escalada de violência e de luta aberta contra o poder constituído. Conforme relata Fuser (2016, p. 84),
Em Santa Cruz e em outras cidades, instituições públicas federais foram tomadas e incendiadas. Chegou-se ao ponto de impedir o pouso de um avião que transportava o presidente Evo Morales. Os governadores dos quatro estados da Meia-Lua, reunidos em Santa Cruz, decidiram, sem invocar qualquer motivo concreto, convocar uma paralisação geral para 19 de agosto, desprezando completamente os resultados do referendo realizado poucos dias antes. A oposição direitista esperava que os militares se sentissem forçados a reagir, causando mortes e a renúncia de Morales, ou criar a justificativa para algum tipo de intervenção da ONU para restaurar a estabilidade.
Esse momento do processo histórico boliviano foi decisivo para a derrota daquela fração da burguesia e o estabelecimento de uma nova correlação de forças. A sequência dos eventos descritos levou ao que o ex-presidente boliviano identificou como o “ponto de bifurcação”, definido como um momento decisivo da configuração de forças político-sociais.
Em suas palavras, o punto de bifurcación o hecho político-histórico a partir del cual la crisis de Estado, la pugna política generadora de desorden social creciente, es resuelta mediante una serie de hechos de fuerza que consolidan duraderamente un nuevo, o reconstituyen el viejo, sistema político (correlación de fuerzas parlamentarias, alianzas y procedimientos de recambio de gobierno), el bloque de poder dominante (estructura de propiedad y control del excedente), y el orden simbólico del poder estatal (ideas fuerza que guían las temáticas de la vida colectiva de la sociedad) (García Linera, 2010b, p. 13).
Seguindo esta periodização da crise do Estado boliviano, o ex-vice-presidente interpretava que, de 2003 a 2008, o país viveu um “empate catastrófico” porque coexistiam no país duas forças antagônicas com sustentação social, equivalentes em força política. Em 2005, houve a modificação do bloco no poder e, em setembro e outubro de 2008, finalmente ocorreu o ponto de bifurcação, com a ofensiva e derrocada do bloco conservador autonomista, “que habría consolidado la nueva estructura de correlación de fuerzas estatales, que quedó además visibilizada en los resultados de las elecciones generales de diciembre del 2009” (García Linera, 2010b, p. 35).
Apesar dessa nova configuração do poder ter representado grandes mudanças no âmbito da cena política e na posterior configuração dos postos de poder na institucionalidade do Estado, em termos relativos, o bloco popular sofreu derrotas importantes no âmbito da constituinte e do texto constitucional aprovado.
Em novembro de 2008, após muitos debate e acordos parlamentares em torno da proposta de texto constitucional, a assembleia constituinte aprovou o documento final, que foi, um mês depois, sancionado pelo Congresso Nacional. Depois de ter passado pelo poder constituído de forma contraditória,7 a Constituição foi referendada por consulta popular em 2009, dando origem, formalmente, ao Estado Plurinacional na Bolívia. Ainda em 2009, Evo Morales foi reeleito para um segundo mandato (primeiro após a aprovação da nova Constituição) com 64,22% dos votos, e o MAS alcançou a maioria nas duas casas da Assembleia Legislativa Nacional (Pannain, 2018).
Quanto ao conteúdo da reforma aprovada, depois de negociados os termos originais do projeto com o Congresso, vários temas centrais das reivindicações das organizações indígenas foram desvirtuados.8 Conforme relata Garcés (2010), o texto aprovado resultou de um acordo entre senadores e deputados dos quatro partidos mais representativos, dentre eles, o MAS, sem a participação direta das organizações que compunham o Pacto de Unidade. Na prática do processo político não ocorreu a divisão do poder entre as duas forças sociais (a popular e a conservadora), mas uma sobreposição do poder das frações agroexportadoras da Meia-Lua sobre os setores populares. Uma das causas apontadas por Gil (2008) para a diminuição de poder e influência do bloco popular sobre os temas aprovados se inicia com a espécie de um novo pacto democrático que o MAS realizou e que, como vimos, García Linera apontou como a estratégia para o momento constituinte:
O exemplo mais conspícuo e acabado do pacto se deu na definição das regras de funcionamento da Assembleia Constituinte para aprovar a matéria constitucional (dois terços em vez de maioria simples): a outorga de um poder de veto à minoria na participação do processo de definição da nova carta constitucional, ficando o governo do MAS refém e à mercê da oposição na medida em que lhe possibilitou o bloqueio e rejeição dos assuntos cruciais, como as políticas de nacionalização, reforma agrária, a autonomia indígena e camponesa sustentadas pelos movimentos populares (Gil, 2008, p. 177).
A política de Unidad Nacional que o governo adotou no processo constituinte resultou em maior benefício ao movimento autonomista departamental e gerou descontentamento de alguns setores presentes no partido e em sua base social, o que, naquele momento, causou a retirada do apoio de algumas frações subalternas e até provocou um movimento de oposição ao governo.9 Tapia (2010) também criticou a dinâmica do processo constituinte desde seu início. Segundo ele, a Lei Especial de Convocatória para a Assembleia Constituinte (LECAC) foi “una estrategia de reducción de la diversidad, del pluralismo cultural y del pluralismo político… al MAS no le interesaba en rigor el despliegue de una asamblea constituyente como tal sino como un momento para legalizar los cambios que se decidían desde el poder ejecutivo” (Tapia, 2010, p. 91). A forma com que foi elaborada a convocatória condicionou os movimentos populares à sua representação pela via partidária através do MAS e, com isso, incluiu e condicionou os movimentos populares independentes à dinâmica entre governo e oposição (Tapia, 2009).
O processo político não atendeu totalmente às expectativas iniciais dos setores que se mobilizaram entre 2000 e 2005, contudo, é preciso reconhecer méritos do processo constituinte, que, de forma geral, se iniciou como um processo de convocação popular por reformas. Nesse sentido, o conteúdo do texto constitucional que resultou desse processo também foi vanguardista no constitucionalismo na região. A Constituição Plurinacional da Bolívia instituiu diversos mecanismos inclusivos das parcelas indígenas e de representação campesina, além de ampliar o espaço para participação direta no sistema representativo liberal e, sobretudo, mudou a institucionalidade e a ideologia jurídica do Estado ao extinguir a forma republicana e instituir o Estado Plurinacional.
Nesse sentido, ainda que o projeto plurinacional tenha sofrido drásticas modificações, a ênfase do texto no reconhecimento dos povos originários, por meio do conceito da plurinacionalidade, representou a inclusão de setores até então excluídos no texto constitucional e demonstra mudanças importantes na ideologia jurídico-política do Estado. Ao compará-lo ao processo de 2006-2009 com a Assembleia Popular de 1952,10 Gil (2008, p. 168) identifica o processo constituinte como uma espécie de revolução burguesa com o elemento distintivo “democratizante indigenista”. Notamos que, em relação a essa característica, a reforma de 2009 incluiu os setores subalternos à lógica democrática burguesa e, concomitantemente, obrigou os partidos na cena política a lidarem com essa variável “democratizante indígena” a que se refere o autor.
A ascensão indígena a institucionalidade e a reorganização do poder político na Bolívia (2006-2009)
Nesta seção, buscamos apresentar um quadro analítico geral acerca do cenário de reorganização do poder, com ênfase na conjuntura de ascensão do bloco indígena e de reforma do Estado (2006-2009), que contribua para compreender as contradições e antagonismos presentes no bloco de poder e na institucionalidade do Estado.
Esses fatores contribuem decisivamente para o exame do discurso porque “situam” quem enuncia o discurso político em um quadro de representações e de conflito de interesses diversos, os quais estão sempre presentes no discurso político. O cenário que antecede a chegada do MAS ao poder foi caracterizado pela alternância de partidos de corte neoliberal que favoreceram prioritariamente setores minoritários (burocracia estatal, empresários e capital estrangeiro espoliador) em detrimento dos setores populares.
No período neoliberal, a preponderância dos interesses monopolistas dominantes se deu a partir de uma hegemonia política compartilhada - e não dirigente - por parte das frações burguesas nativas aliadas ao capital internacional, especialmente o norte-americano. Essa dominância se articulou por meio de três segmentos monopolistas: o capital mineiro, o capital agroindustrial e o capital bancário privado nacional (Gil, 2008).
A partir da estrutura econômica primária exportadora do país, a burguesia nativa estava dependente das determinações externas do mercado mundial (fixação de preços e demanda de matérias-primas no mercado mundial e da dinâmica mundial de outros centros de acumulação). Para Tapia (2009, p. 17), essa condição dependente da burguesia boliviana ajuda a explicar sua característica “não dirigente” no âmbito econômico e político:
A nivel de la composición técnica, la burguesía boliviana no ha dirigido los procesos productivos en las ramas centrales, y sobre todo no ha dirigido la articulación de la economía nacional. Por eso también hay debilidad en su composición política; es decir, al no ser dirigente en el proceso productivo o económico no tiene el aprendizaje y la acumulación histórica para ser dirigente en lo político.
Pelo somatório dessa debilidade da burguesia nacional com a ascensão do MAS ao poder em 2006, abre-se um novo horizonte de instabilidade hegemônica no bloco no poder. Esse ambiente criou condições favoráveis para a constituição de uma nova burocracia estatal como força social, composta pela pequena burguesia e camadas médias da sociedade, com origem nos setores indígena e campesino (Gil, 2008). García Linera (2010b, p. 18-19) define essa nova burocracia como uma síntese de funcionários antigos e novos, com um background educacional e a origem étnica distinta da burocracia tradicional:
La nueva burocracia, en cambio, proviene de las universidades públicas, de profesiones técnicas o sociales, em tanto que el tipo de vínculos que ha mejorado su acercamiento a la administración pública ha sido el de las redes sindicales que cumplen una especie de filtro en el reclutamiento de ciertos niveles intermedios de la burocracia estatal.
Segundo o referido autor, essa nova burocracia também se diferenciava da burocracia tradicional em razão das suas origens classistas e do modo com que ascenderam aos postos do Estado. No período neoliberal, os níveis intermediários do aparato de Estado eram compostos por profissionais provenientes de universidades privadas estrangeiras com formação voltada ao âmbito empresarial e seu acesso aos postos de Estado se davam por meio de vínculos familiares e compromissos partidários. Essa nova burocracia, no entanto, tinha sua formação muito mais voltada à formação política do que empresarial, já que tinham fortes vínculos com o sindicalismo indígena11 e estavam ligados ao processo de ascensão do MAS ao poder. Nesse sentido, esse setor impulsionou o “proceso de cambio”, articulado pelo MAS e com amplo apoio dos movimentos populares por meio da reforma do Estado (Gil, 2008). Simultaneamente à formação dessa burocracia, se formava, assim, um bloco no poder dominante com novas características:
Su base material económica la constituye la pequeña producción mercantil, tanto agraria como urbana, (...) En ese bloque dirigente destacan campesinos indígenas con vínculos regulares con el mercado (el trópico [Chapare] y valles de Cochabamba; zonas de colonización en el oriente; comunarios del altiplano paceño, orureño, chuquisaqueño y potosino; valles tarijeños), indígenas campesinos de tierras bajas y de los ayllus andinos, también pequeños productores urbanos y sectores con actividad mercantil relativamente avanzada, entre los que se puede hablar de la presencia de un tipo de “empresariado de origen popular” que auto identificado más como trabajador que como burguesía, abastece el mercado interno y, en parte, a mercados externos (García Linera, 2010b, p. 17).
A descrição anterior sobre as bases sociais que compunham o bloco emergente e ressalta a presença de um “empresariado popular” no bloco dominante e de uma base material econômica da pequena produção mercantil. Essa característica contrasta com a ideia de que haveria uma nova fração dominante no período, mais tarde identificada por Rojas (2015), como uma burguesia de Estado. Isso porque, sendo válida a descrição realizada por García Linera em 2010, as bases econômicas do bloco emergente teriam se modificado drasticamente em pouco mais de quatro anos.
A partir de um afastamento temporal mais expressivo do que García Linera, Rojas (2015) traz à discussão a hipótese da existência dessa nova fração dominante ao se referir à Venezuela e à Bolívia no estudo sobre os governos “pós-neoliberais”. Segundo o autor, no caso da Bolívia, ocorreu, no período masista, uma tentativa de formação de uma nova fração dominante - composta fundamentalmente por membros dos movimentos camponês-indígenas - a qual denomina de “burguesia de Estado”.12 Em comum com o processo venezuelano, a Bolívia teria como características um capitalismo pouco desenvolvido e uma fonte de riqueza concentrada na extração e exportação de recursos naturais (petróleo, gás e minério), além das políticas de nacionalização e fortalecimento do Estado como estratégia para a criação de um novo modelo produtivo. No caso boliviano, essa nova fração se construiu no processo pré-eleitoral como uma força “desde baixo” - originada nos setores subalternos (camponês-indígena) - e ganha força político-eleitoral com a vitória do MAS.
Imerso na realidade dos primeiros anos do processo de mudança boliviano, em 2007, Tapia (2007) chama a atenção para a possibilidade de ascensão de um novo bloco histórico, diferente daquele pensado a partir de um registro teórico gramsciano e, podemos acrescentar, diferente também dos pressupostos que identificam o bloco no poder poulantziano:
En el caso boliviano, no se trata de una clase fundamental del modo de producción capitalista la que se constituye como el núcleo articulador del bloque sino los campesinos, pero a través de la organización de algunas formas modernas de hacer política, como son los sindicatos y los partidos, sindicatos que generan partidos, pero que tienen a la vez un fondo social e histórico que son las estructuras comunitarias (Tapia, 2007, p. 102).
Isso é importante para atentarmos à natureza das contradições que ocorrem posteriormente nesse processo no que se refere à construção de sentido comum acerca do projeto nacional. Essas forças sociais que articulam o poder e projetam o horizonte nacional comum através desse bloco social de novo tipo são, em sua maioria, sujeitos agrários - alguns modernos e outros de matriz comunitária. Nesse sentido, o novo projeto nacional acumula tensões políticas, econômicas e ideológicas entre sua base de sustentação social e a proposta articulada no Pacto de Unidade. Segundo Tapia (2007, p. 101), tal projeto tinha sua sustentação em sujeitos agrários que pretendiam levar a cabo um projeto moderno: “el núcleo del proyecto es nacionalización e industrialización. Esta compleja composición produce tensiones que todavía están por desplegarse en el tiempo venidero”.
Somando-se a essa contradição, a realidade boliviana em suas particularidades apresenta outros desafios para a análise da conjuntura da luta de classes e do projeto de reforma do Estado. Sendo uma sociedade multicivilizatória, onde se sobrepõem vários modos de produção e tempos históricos, a análise de classe pode não estar centrada apenas no conflito entre as classes fundamentais no modo de produção (Tapia, 2009). Ainda que o Estado sempre tenha mantido uma estrutura cuja lógica provinha dos moldes moderno e mercantil capitalista (García Linera, 2010a), a principal contradição classista não está articulada no plano político pela polaridade entre proletariado e burguesia, ou seja na dimensão unicamente da produção, mas estava organizada pelo cruzamento de forças de diferentes modos de produção e matrizes civilizatórias; por isso, não estavam apenas em disputa “exclusivamente las dimensiones económicas, sino también las de organización política del estado en general, es decir, la organización de la forma primordial, que es la que ha mantenido relaciones coloniales a lo largo del tiempo” (Tapia, 2009, p. 198).
Essa diversidade de matrizes produtivas e de organização política tornam complexos os aspectos relativos à autonomia relativa do Estado (ARE) e ao próprio conceito de bloco no poder no caso boliviano. A autonomia relativa deve ser compreendida de forma distinta segundo se trate de Estados de capitalismo avançado e Estados periféricos. No caso boliviano, a distinção se explica, fundamentalmente, pela composição da formação econômica-social, que, para Tapia (2010), é melhor identificada pelo conceito de “formação social abigarrada”. Conforme o autor, esse conceito de Zavaleta serve para “pensar la coexistencia y sobreposición desarticulada de varios tiempos históricos, modos de producción, concepciones de mundo, lenguas, culturas y diferentes estructuras de autoridad” (Tapia, 2010, p. 100). De modo geral, essa característica configura tipos de formações “sobrepostas”, em que o aparato estatal ocupa essencialmente as regiões centrais do território, onde o processo de ocupação colonial foi mais exitoso. Essa dinâmica configura, na maior parte das vezes, um processo incompleto de hegemonia pelo qual o modelo de Estado eurocentrado não alcança uma transposição coerente às sociedades latino-americanas (Medeiros, Busnello, & Granato, 2020)).
A sociedade compreendida a partir de suas condições de abigarramento nos ajuda a compreender a realidade boliviana porque considera a inter-relação entre os diversos modos de produção e de autoridade políticas sobredeterminados. Essa dinâmica política e econômica é descontinuada constantemente em razão de que o Estado capitalista, em grande parte da América Latina, não foi capaz de se sobrepor totalmente sobre essas estruturas do “subsolo político” e, assim, não constitui uma unidade quanto ao modo de produção e ao exercício de poder político. Nesse sentido, Pimmer (2016) ressalta que para autores como René Zavaleta e Luis Tapia são dois os fatores principais que influenciam na possibilidade de “situações instrumentais” e “fases de autonomia relativa” do Estado em uma formação social abigarrada. O primeiro é a existência de uma heterogeneidade estrutural, caracterizada pelos efeitos que a sobreposição de diversas estruturas de autoridade exerce sobre a ARE. Esses efeitos fazem com que a ARE, no âmbito político, só seja possível nas regiões onde a institucionalidade moderna prevalece, como no caso das principais cidades do país.
O segundo fator que Pimmer (2016) menciona é a forma como ocorre a apropriação de excedente econômico. Essa condição material é prejudicada no Estado periférico, em razão da sua inserção dependente ao mercado mundial. A dependência faz com que apenas uma parte pequena do excedente seja acumulada e esteja à disposição do Estado como margem de manobra para a ARE. Assim, vale lembrar que o Estado na Bolívia adquire, na conjuntura de que tratamos, alguma margem de ARE e isso se deve em parte à política de nacionalizações e renegociações de contratos relativos à exploração de recursos naturais, como é o caso dos hidrocarbonetos e, no passado, da mineração.13
Já tratando-se do conceito do bloco no poder, a reorganização da forma primordial na conjuntura de reforma, a partir da característica multicivilizatória da sociedade boliviana, é explicada por Tapia (2009) através do conceito de bloco político. O principal elemento que o autor traz é a distinção entre composição técnica e composição política de classe para diferenciar sujeito classista e sujeito político, bem como poder de classe e poder de Estado. A composição técnica se relaciona com articulação específica das forças produtivas na formação social, logo, define a classe propriamente dita. Já a composição política, nas palavras do autor:
es la configuración de prácticas, organización e ideología producto de la historia de la lucha de clases, que se despliega tanto en el seno del proceso y del ciclo de trabajo y del capital, como en el espacio social y político global de luchas por la distribución, redistribución, reproducción ampliada y desarrollo de la riqueza o valor social producido (Tapia, 2009, p. 13).
A composição política compreende, dentre outras coisas, as articulações que os agentes da produção realizam fora do processo produtivo, como, por exemplo, as formas de organização e de consciência para promover seus interesses econômicos, mas também no que diz respeito ao tipo de sociedade, ordem política ou modelo civilizatório que desejam promover. A partir do bloco político, portanto, podemos inferir que é da composição política que deriva a construção ideológica acerca do projeto nacional, o que, no caso boliviano, nos remete às relações não apenas no âmbito econômico em sua diversidade, mas também nas relações políticas no âmbito jurídico-ideológico.
Em segundo lugar, a partir desse conceito, podemos trabalhar com a hipótese de que, ao contrário do que aponta o conceito de bloco no poder de Poulantzas (2019), no caso boliviano (2006-2009), pode não ser uma fração da classe dominante que articula o poder estatal, mas, inversamente, quem o fez foi um sujeito político ao incluir integrantes que ocupam posições estruturais de classe. Nesse sentido, as forças sociais que ascendem ao aparato do Estado no ano de 2006, o núcleo campesino-indígena, é quem articula, posteriormente, a presença de frações ou membros individuais da classe no exercício do poder. Se por um lado não é possível determinar uma fração da burguesia como hegemônica no período, pode-se inferir, por outro, que um setor dela, o setor minerador, foi o maior beneficiado pela legislação e pelas políticas econômicas governamentais, fato que se demonstrou em um importante crescimento econômico do setor.14
As interpretações sobre a luta de classes na Bolívia são diversas e dependem, entre outros aspectos, de agregar à análise mais ou menos elementos específicos daquela formação social. Nosso propósito aqui é o de identificar os aspectos comuns dessas análises para uma aproximação do cenário de reorganização do poder no período reformista, para assim definirmos um quadro analítico geral para a análise do discurso plurinacional na cena política. Os estudos sobre a conjuntura, em síntese, apontam para as seguintes hipóteses:
havia uma nova burocracia estatal articulada junto a um bloco de poder popular (García Linera, 2010b);
havia uma nova burguesia de Estado (Rojas, 2015);
havia um novo bloco histórico (Tapia, 2007; Cunha Filho, 2011; Santaella, 2016);
havia um novo bloco político (Tapia, 2009).
A partir de diferentes referenciais teóricos, essas análises têm em comum o fato de apontar para a existência de forças sociais de origem subalterna, que ascendem ao poder político a partir da vitória eleitoral de Evo Morales, em 2005. Entendemos que, no caso boliviano, essas forças sociais eram compostas, no início do processo (2006-2008), pelos núcleos dirigentes campesino-indígena e sindical e, posteriormente, configuraram a prevalência dos setores campesino (cocaleiro) e sindicais, em detrimento do núcleo indígena e de suas demandas plurinacionais.15 Foram esses núcleos populares prevalentes que articularam a presença de frações da antiga classe dominante no segundo mandato do MAS. A partir da análise desse período, entendemos também, em associação com o que propõe Tapia (2009, p. 35), que não havia, até 2009, um bloco político dominante a nível nacional:
en el país hoy no hay un bloque político dominante a nivel nacional. Estamos en una situación en la que, por un lado, tenemos un bloque político que está configurado en torno a un partido de origen campesino que ha articulado una amplia red de alianzas políticas con varios sectores populares, pero que no constituye un nuevo bloque dominante, ya que no controla la economía, pero está en proceso de avanzar para crear las condiciones de un mayor control en el ámbito de los recursos naturales. Por el otro lado, tenemos una clase burguesa y terrateniente todavía dominante que ha perdido la dirección nacional del estado y el predominio en el sistema de partidos nacional, aunque todavía lo mantiene en algunos departamentos.
Não existia, portanto, uma fração hegemônica no país. Essa ausência de hegemonia, especialmente no campo ideológico, vai ao encontro do objetivo de analisar o discurso e a ideologia plurinacional no período. Isso porque é no campo das práticas de classe, em nosso caso, na dimensão da disputa pela dominância ideológica, que verificamos o discurso político (plurinacional) como uma das práticas que constrói a ideologia de Estado. Essa luta por hegemonia no país tem, por sua vez, um espectro mais amplo do que o classista, já que é por meio de um partido de trabalhadores, que articula discursivamente reivindicações e projetos de igualdade entre nações, que levou à assembleia constituinte e a um Estado Plurinacional (Tapia, 2009).
Assim, uma das principais particularidades do processo político boliviano é que o discurso político envolve a materialidade histórica multicivilizatória da formação social boliviana. Nesse sentido, existe a necessidade de adequação do discurso político no período de reforma do Estado capitalista, pois a ideologia que o permeia deve ser capaz de articular tanto contradições entre o capital e o trabalho como também aquelas relacionadas ao conflito entre formações sociais capitalistas e pré-capitalistas.
Retornando à questão da configuração do poder, verificamos que as forças sociais que ocuparam os aparelhos do Estado boliviano são de frações subalternas que transformaram sua força social em política, contudo, não tiveram condições objetivas de transformar esta força em dominância econômica no período em tela. A esse respeito, Tapia (2009, p. 34), ao tratar de um possível horizonte de autonomia relativa do Estado, acrescenta que “la dirección del estado está en manos de un partido de campesinos, sectores populares y trabajadores, aunque el grueso de la propriedad, en el ámbito de la economía, sigue en manos de esa clase dominante” (Tapia, 2009, p. 34). Isso porque a classe dominante, a partir da vitória do MAS, perde a capacidade de articular-se como um bloco político dominante, a não ser em nível departamental - especialmente em Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando -, ainda que mantendo grande parte do poder econômico. É essa conjuntura de instabilidade do bloco político que se expressa, em grande parte na cena política, através da sua reconfiguração e da conformação de novas alianças político-partidárias. Assim foi possível a aprovação da reforma do Estado pela via elegida por esse bloco em ascensão, a via democrática burguesa.
O discurso político na conjuntura boliviana de 2006
Nesta seção, realizamos a análise do discurso na cena política boliviana, especificamente na conjuntura de ascensão do MAS à institucionalidade do Estado. Esse discurso, aqui denominado de “discurso plurinacional”, vêm à cena política pela primeira vez no momento de posse de Evo Morales em 2006, em cerimônia indígena em Tiahuanacu e, no dia seguinte, na cerimônia de posse presidencial no parlamento boliviano. Nesse marco discursivo verifica-se a representação dos conflitos históricos no país, as relações de conflito e disputa entre os grupos sociais no país em transformação.
A análise da dimensão ideológico-discursiva neste artigo vem acompanhada da contextualização realizada nas seções anteriores, onde se verificou a situação de classes e dos grupos sociais envolvidos na conjuntura política do país. Tanto o exame sobre as classes e grupos sociais quanto o exame da representação da luta política são compreendidas aqui como complementares; entretanto, cada uma delas se constitui a partir de diferentes dados empíricos. Essa distinção é necessária de ser enfatizada porque a posição do sujeito do discurso não é a mesma posição do sujeito “empírico” na história. A posição do sujeito do discurso é a posição imaginária. Já a posição do sujeito “empírico” é uma factual, material, no sentido em que se localiza em determinada posição nas relações de produção. Vale recordar, contudo, que as relações que se estabelecem entre as formações imaginárias e a realidade não são de oposição, mas, pelo contrário, o imaginário é constitutivo da realidade (Zoppi Fontana, 2015, p. 50). Isso porque a ideologia só existe em sua prática, que, por sua vez, é constitutiva da realidade. É nesse aspecto que se fundamentam as relações de reprodução ou de rupturas, na medida em que a prática e a realidade se retroalimentam. A síntese entre esses sujeitos (do imaginário e da prática) nos permite compreender os resultados das relações imaginárias e de produção como uma totalidade explicativa. Essa síntese é aqui discutida, portanto, pela contextualização histórica realizada nas seções anteriores e o discurso de Evo Morales na cena política.
Para a análise do discurso político (AD) realizada em seguida, procedemos com “recortes discursivos”, que, por sua vez, contêm “sequências discursivas”, que correspondem a falas de Evo Morales (presidente) no discurso. Esse recorte será identificado pela abreviação RDE. O discurso político de Evo Morales representa um dos “discursos de Estado”, mas, especificamente, do Executivo do Estado plurinacional. Aqui se compartilha a ideia de que não há apenas um discurso, mas vários discursos de Estado (Poulantzas, 2015). Evo Morales emite um discurso relativamente coeso e que busca o efeito de unidade do Estado em transformação, nesse sentido, é interpretado com um discurso que representa o projeto masista. Além disso, o critério para esses recortes está relacionado ao fato de que nossa análise, conforme a AD pecheutiana, recai sobre a relações que os sujeitos estabelecem com os discursos, com as formações discursivas e a forma com que são interpelados pela ideologia dominante. Desta forma, a unidade do discurso, ou mesmo a relação causal que poderia se depreender desses RDs não é um pressuposto para nossa seleção discursiva analisada. Nesse sentido, os recortes que aqui trazemos para análise destas questões é apenas um tipo de funcionamento possível no discurso político na conjuntura estudada, sem prejuízo de que haja outros, que levantem outros aspectos igualmente relevantes.
A representação da luta política no discurso plurinacional
Nesta subseção analisamos o discurso político de Evo Morales com objetivo de evidenciar a representação ideológica da luta política em torno do processo de mudança no país.
Este recorte discursivo corresponde às primeiras palavras enunciadas pelo novo presidente em uma cerimônia indígena, no discurso Todos Somos Presidentes, na assunção de seu primeiro mandato, em 2006, em Tiahuanacu, local sagrado para os indígenas do continente. Além disso, também contempla o exame de sequências discursivas do discurso proferido no dia seguinte, na cerimônia de posse ocorrida no parlamento boliviano.
SDE1: Muchísimas gracias por todo el apoyo que me dieron en la campaña, hermanas y hermanos, los aymaras, los quechuas, los mojeños. Les decía, hermanas y hermanos de las provincias del departamento de La Paz, de los departamentos de Bolivia, de los países de Latinoamérica y de todo el mundo, hoy día empieza un nuevo año para los pueblos originarios del mundo, una nueva vida en que buscamos igualdad y justicia, una nueva era, un nuevo milenio para todos los pueblos del mundo, desde acá Tiahuanacu, desde acá La Paz, Bolivia (Morales Ayma, 2006a).
SDE2: Tantas marchas, huelgas, bloqueo de caminos, pidiendo salud, educación, empleo, respeto a nuestros recursos naturales, que nunca han querido entender.
Como no podemos resolver sindicalmente, el movimiento campesino boliviano se atrevió a resolver políticamente, electoralmente, es el Movimiento Al Socialismo, es el instrumento político por la soberanía de los pueblos.
Para información de la comunidad internacional este movimiento no nace de un grupo de politólogos. Este instrumento político, el Movimiento Al Socialismo no nace de un grupo de profesionales. Aquí están nuestros compañeros dirigentes de la Confederación Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de Bolivia, de los compañeros de CONAMAQ (se refiere al Consejo Nacional de Marcas y Ayllus del Llasuyu), de los compañeros de la Federación Nacional de Mujeres Bartolina Sisa, la Confederación Sindical de Colonizadores de Bolivia, estas tres, cuatro fuerzas, algunos hermanos indígenas del Oriente boliviano, el año 1995 empezamos a construir un instrumento político de liberación (Morales Ayma, 2006b).
SDE3: Y quiero decirles a ellos, a ustedes hermanas y hermanos: de la resistencia a la toma del poder. Se acabó sólo resistir por resistir. Hemos visto que, organizados y unidos con los movimientos sociales de las ciudades, del campo, combinando la conciencia social, con la capacidad intelectual es posible derrotar democráticamente los intereses externos. Eso pasó en Bolivia (Morales Ayma, 2006a).
SDE4: Muy emocionado, convencido que sólo con la fuerza del pueblo, con la unidad del pueblo vamos a acabar con el estado colonial y con el modelo neoliberal. Este compromiso, en lo más sagrado de Tiahuanacu, este compromiso para defender a los bolivianos, para defender al pueblo indígena originaria, no solamente de Bolivia, como anoche nos dieron la tarea, defender a los pueblos indígenas de América, antes llamada Abayala.
Pero los resultados, el apoyo de todos ustedes, quiero decirles un compromiso serio y responsable, no de Evo Morales, sino por todos los bolivianos, por todos los latinoamericanos, necesitamos la fuerza del pueblo para doblar la mano al imperio (Morales Ayma, 2006a).
SDE5: Esta mañana un compañero, Héctor Arce, nuestro abogado, me recordaba, antes de salir acá a esta sesión, y me dice, Evo, un día como hoy, 22 de enero, te expulsaron del Congreso Nacional. ¿Recuerdan algunos compañeros? Que Evo es asesino, Evo es narcotraficante, Evo es terrorista. Yo dije en ese momento, me estarán expulsando, pero voy a volver con 30, 40 parlamentarios, si es posible con 70, 80. Lo que dije un día en el 2002 se ha cumplido. No me arrepiento. Más bien aportaron con esa clase de actitudes para que el pueblo boliviano, el movimiento indígena gane las elecciones del año pasado. Muchas gracias. Algunos decían en su debate acá para expulsarme: hay que acabar con el radicalismo sindical; ahora nos toca decir, hay que acabar con el radicalismo neoliberal, hermanas y hermanos. Pero lo vamos a hacer sin expulsar a nadie, no somos vengativos, no somos rencorosos, no vamos a someter a nadie. Acá deben mandar razones, razones por el pueblo, razones por los pobres, razones por los pueblos indígenas que son la mayoría nacional de nuestro país. No se asusten compañeros parlamentarios electos posesionados de otros partidos que no son del MAS. No haremos lo que ustedes nos han hecho a nosotros, el odio, el desprecio, la expulsión del Congreso Nacional. No se preocupen, no se pongan nerviosos. Tampoco va haber rodillo parlamentario. Con seguridad el movimiento indígena originario, así como nuestros antepasados, soñaron recuperar el territorio y cuando estamos hablando de recuperar el territorio estamos hablando de que todos los recursos naturales pasen a manos del pueblo bolivianos, a manos del Estado boliviano (Morales Ayma, 2006b).
SDE6: Respetamos, admiramos muchísimo a todos los sectores, sean profesionales o no profesionales, intelectuales y no intelectuales, empresarios y no empresarios. Todos tenemos derecho a vivir en esta vida, en esta tierra, y este resultado de las elecciones nacionales es, justamente, la combinación de la conciencia social con la capacidad profesional. Ahí pueden ver que el movimiento indígena originario no es excluyente. Ojalá, ojalá otros señores también aprendan de nosotros (Morales Ayma, 2006b).
SDE7: Yo quiero decirles con mucha sinceridad y con mucha humildad, después de que he visto muchos compañeros de la ciudad, hermanos de la ciudad, profesionales, la clase media, intelectuales, hasta empresarios, que se suman al MAS. Muchas gracias, yo me siento orgulloso de ellos, de nuestra clase media, intelectual, profesional, hasta empresarial, pero también les invito a ustedes que se sientan orgullosos de los pueblos indígenas que son la reserva moral de la humanidad (Morales Ayma, 2006b).
Na SDE1, o presidente faz a identificação dos setores indígenas que o apoiaram em sua vitória eleitoral, com destaque especial para as etnias mais representativas para o sucesso do processo. Essa referência não só indica parte importante do bloco em ascensão, mas também, posteriormente, se traduz materialmente na ocupação de representantes desses setores subalternos no aparelho do Estado no período 2006-2010.16
No mesmo trecho, o discurso interpela aos “povos originários do mundo” a partir da sequência “hoy día empieza un nuevo año para los pueblos originários del mundo”, em referência ao passado indígena. O enunciado, naquele local, resgatava o passado dos povos indígenas e ressignificava o seu governo, como um governo que transborda as barreiras do Estado-nação. O local em que discursa, conforme Rojo (1980), foi historicamente um centro de poder político para grande parte da América, antes do domínio Inca e da chegada dos espanhóis. Dessa forma, ressignifica-se o local, onde antes os aymaras governavam e, naquele dia, simbolicamente voltavam a governar.
Na SDE2, ao fazer referência aos setores subalternos, dessa vez no parlamento, o discurso inclui outros grupos e os identifica como a formação do partido Movimento ao Socialismo. Aqui, diferente da SDE1, os limites do que pode ser dito se circunscreve na formação discursiva político-partidária democrática e liberal. Ou seja, lá, a referência aos “povos originários do mundo” se reduz aqui à identificação daqueles sujeitos como parte integrante do partido, ou parte dos movimentos sociais campesinos e indígenas.
Além de nomear os setores subalternos que formariam o bloco ascendente, o presidente faz referência ao fato de que “este movimiento no nace de un grupo de politólogos”, “no nace de un grupo de profesionales”, apontando para uma oposição crítica aos partidos que surgem de politólogos ou grupo de profissionais. Esses partidos permanecem indeterminados no discurso, uma forma de distinção do MAS em relação a “todos” os outros.
Na SDE3, no discurso aos indígenas em Tiahuanacu, notamos a retomada de um discurso combativo, que não busca a mediação ou conciliação. No trecho “Se acabó solo resistir por resistir”, não há sujeitos explícitos determinados pelo discurso, mas implícitos. Morales remete, na sequência, àqueles que seriam os sujeitos: os movimentos populares e o próprio presidente. Os inimigos, no entanto, aparecem indeterminados ou apagados. Também, nesse trecho Morales ressignifica os movimentos de resistência diante do acontecimento histórico e acontecimento discursivo de tomada do poder. Acaba por dar novo sentido ao movimento de resistência, delimitando que antes, a resistência popular era inócua, e que agora, diante da ascensão do poder popular à institucionalidade burguesa, a resistência finamente conquista o objetivo válido. O acontecimento histórico (tomada de poder político) nesse sentido é seguido pelo acontecimento discursivo (a ressignificação do que é resistir), que demarca um antes e um depois, para construção de novos discursos, novos sentidos à luta em curso. Assim a ressignificação e novos discursos sobre determinado fenômeno político é uma necessidade deste acontecimento histórico para gerar um efeito de coesão, também necessário a conjuntura social naquele processo.
Já, quando declara que “es posible derrotar democráticamente los intereses externos”, o presidente atenua o conflito que declara possíveis acusações de radicalidade. Se, por um lado, naquele contexto, “derrotar os interesses externos” soa como algo radical no contexto liberal, a chamada à democracia atenua essa radicalidade. Ou seja, ao enunciar, Morales interpela tanto aqueles que o elegeram por mudanças radicais, quanto aqueles que se veem ameaçados pelo possível confronto. Assim, o advérbio de modo “democraticamente” resulta em um efeito de sentido que retira a radicalidade desse enunciado, considerado radical na política burguesa.
Há essa necessidade de suavizar uma assertiva de confronto porque, ao enunciar dessa forma, em primeiro lugar, faz-se referência a uma dualidade que remete àquele presente no imaginário popular acerca das lutas de classes. Essa oposição, o conflito, a própria referência, ainda que indireta a esse conflito de classes, é algo que não se costuma abordar nos debates políticos eleitorais. Além disso, ao declarar oposição aos “interesses externos”, está se referindo, especialmente, a burguesia ligada ao agronegócio e ao capital internacional. Ou seja, frações burguesas que dominaram a história política boliviana e que agora se viam, pelo menos discursivamente, confrontadas.
Na SDE4, as referências ao “inimigo externo” aparecem determinadas a partir de referências que remetem às FDs tracionais e modernas. Nessa sequência, o “império”, o “estado colonial” e “el modelo neoliberal” representam essas forças que oprimem o povo e demarcam uma fusão entre inimigos externos e internos, tradicionais e modernos. Ou seja, o “império” e o “estado colonial” pertencem às FDs indígenas campesinas tradicionais, já o “o modelo neoliberal” remete não apenas ao tradicional, mas também às estruturas do Estado capitalista e, dessa forma, interpela não apenas as comunidades indígenas, mas também os demais setores urbanos, da pequena burguesia especialmente.
Além disso, ao referir-se ao neoliberalismo, ele também remete à referência dos partidos anteriores que implementam essas políticas. Sem mencionar nenhuma dessas frações que, por meio dos partidos põem em marcha as políticas de austeridade e privatizações, o discurso remete a todas as consequências negativas desse modelo.
Ainda sobre os adversários do projeto masista, as sequências discursivas de Evo Morales números 5, 6 e 7 contribuem para compreendermos, a partir da prática ideológica discursiva, como o sujeito discursivo Morales interpela seus adversários por meio do confronto e da conciliação, alternadamente.
Ao interpelar os adversários, ele remete a uma memória discursiva de discriminação indígena, que é uma regularidade em seu discurso. Recorda o fato de ter sido expulso do congresso sob as acusações de terrorista, narcotraficante, assassino. Aqui os acusados dessa prática são indeterminados: “te expulsaran”, “algunos” “que Evo es”, “me estarán expulsando”, ou seja, ao fazê-lo dessa forma, põe todo o parlamento em questão como uma instituição racista etc.
Após, ele realiza uma narrativa de redenção do povo indígena, sempre discriminado nos espaços públicos, agora ocupando a institucionalidade do Estado, e parafraseia um enunciado histórico do movimento indígena e da luta anticolonial, referente ao esquartejamento em praça pública de Tupac Katari. Segundo a tradição oral, Katari disse, antes de ser esquartejado, traduzido ao espanhol: “¡A mi solo me están matando; sobre mi, miles de millones volveremos...!”, ou “volveré, y seré millones!”.17 Morales enuncia “me estarán expulsando, pero voy a volver con 30, 40 parlamentarios, si es posible con 70, 80”. Essa narrativa marca um acontecimento discursivo, que dá efeito à percepção de sua posse como um acontecimento de superação, de virtual impossibilidade que os povos indígenas teriam superado.
Em seguida, Morales repete o discurso de seus adversários à época de sua expulsão, que diziam: “hay que acabar con el radicalismo sindical” e, em oposição, acrescenta, “ahora nos toca decir, hay que acabar con el radicalismo neoliberal, hermanas y hermanos”. A palavra “ahora” parece indicar que haverá um “acerto de contas” contra aqueles parlamentares neoliberais, que outrora o expulsaram do parlamento. Mas o enunciado “No se asusten compañeros parlamentários”, junto a “No se preocupen, no se pongan nerviosos”, suaviza o discurso.
Na SDE6, Morales interpela diretamente “a todos los sectores” da sociedade em igualdade a se juntarem ao movimento indígena no governo. E completa: “el movimiento indígena originario no es excluyente.”, para contrapor outros enunciados presentes na memória discursiva18 no país (1) o movimento indígena é excludente; (2) o movimento indígena vai excluir a todos os não indígenas. Essa memória discursiva se relaciona com o discurso e o acontecimento histórico para a produção de um novo acontecimento discursivo. A memória, de certa forma, sofre os impactos dos novos discursos e se remodela para a formação de uma nova memória e sempre incompleta e provisória. A memória destacada nesse trecho é trazida à um novo campo de significação, onde é preciso demarcar que o movimento indígena é inclusivo, diferente dos parlamentares da oposição ou à antiga oligarquia.
Em seguida, enuncia “Ojalá, ojalá otros señores también aprendan de nosotros”, e retoma a regularidade discursiva acerca da exclusão e intolerância que sofrem os povos indígenas no país, sem, contudo, indicar quem seriam os “otros señores” que deveriam aprender a não ser excludentes.
Na tentativa de demostrar o ânimo conciliador do processo em curso, na SDE7, notamos que Morales se dirige aos intelectuais, a pequena e média burguesia, para incluirmos no discurso agregador. A utilização das expressões “mucha sinceridad y con mucha humildad” demarca uma quebra de hierarquia, também frequente no discurso de Morales, mas pouco comum em discursos de chefes de Estado. Destacamos nesse excerto, especialmente, que, por duas vezes, Morales se refere aos empresários precedidos da palavra “hasta” (até) para demarcar o conflito inicial que existe entre o bloco ascendendo e a burguesia na Bolívia.
Além disso, nas SDE6 e 7, nota-se a menção à classe média, um setor decisivo para o MAS desde sua institucionalização.
Conclusão
Este artigo discutiu a representação ideológica da luta política presente no discurso plurinacional no período de ascensão do MAS à institucionalidade estatal na Bolívia. Especificamente, analisou-se os discursos de Evo Morales nas cerimônias de posse indígena e parlamentar, no ano de 2006.
Em termos teóricos conceituais, a partir dessa análise, verificou-se parte do processo de reformulação da ideologia dominante (e representação sobre a luta política) por meio de uma de suas práticas (o discurso político) ao nível da luta política-ideológica na formação social boliviana. Sobre a conjuntura concreta estudada, conclui-se que a representação da luta política no discurso de Evo Morales (o discurso plurinacional), em 2006, se constitui por elementos que remetem à exclusão e submissão das classes subalternas na história do país e à ressignificação da luta política das classes subalternas.
A ressignificação do sentido de resistência indígena e da luta política da classe subalterna, em geral, se destaca logo no início do discurso. Esse novo sentido à resistência popular é reforçado pela ascensão institucional, ou seja, pelo reconhecimento simbólico dos movimentos indígenas e campesinos pela institucionalidade estatal. O novo sentido à luta política se dá, no discurso plurinacional, como forma de “tomada do Estado”, e se traslada às instituições posteriormente, em forma de ideologia plurinacional. A institucionalidade burguesa, republicana, naquele momento, passa a ser plurinacional no imaginário da cena política.
A exclusão e submissão das classes subalternas é também um fator importante que se identifica no discurso de Evo Morales. A todo momento a referência ao passado de submissão e humilhações desses setores legitima, em termos discursivos, a tomada do poder e, principalmente a luta contra a antiga burguesia. A referência aos adversários políticos se dá de forma indeterminada ou apagada na maior parte do discurso. Quando ocorre, esses adversários são considerados de forma negativa, como agentes externos, alheios ao “proceso de cambio” impulsionado no período em tela. Ainda assim, de forma geral, o discurso de Evo Morales oscila entre a responsabilização dos demais partidos pela condição de subordinação externa do país e ao convite à conciliação.
Por fim, esses elementos constituem um discurso que ajuda a consolidar uma narrativa de redenção e comando dos setores subalternos no país e, ao mesmo tempo, atua em favor da coesão de um imaginário plurinacional e de unidade territorial naquela conjuntura de conjuntura de transformação do Estado.
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1
Período caracterizado como “o ciclo rebelde”, de 2000 a 2005, consistiu na reação às políticas neoliberais de privatização de parte dos recursos naturais a empresas transacionais. Foi um movimento constituído principalmente por organizações indígenas e por movimentos anti-privatizações (dentre os quais se incluíam os movimentos campesinos e sindicais). Especificamente, duas organizações populares foram fundamentais: os cocaleros do Vale do Chapare, no departamento de Cochabamba, e os aimarás do Altiplano, nos Andes. Aliada a esses atores principais, foi mobilizada uma vasta rede de sindicatos camponeses e associações locais espalhadas por todo o país.
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2
A frente EU era uma fração do partido que segue Evo Morales após sua expulsão da ASP, e que posteriormente se denomina “Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos”, com a adição de “Movimiento al Socialismo” ao nome.
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3
O Pacto de Unidade foi formado em 2004, ainda que apenas tenha logrado levar suas pautas a nível institucional-nacional após a vitória do MAS nas eleições de 2005.
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4
A maioria era por uma diferença mínima. Junto aos seus aliados, o MAS possuía apenas 50,07% das cadeiras.
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5
A região denominada Meia-Lua abarca os departamentos de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, no leste do país. A partir de 2005 formou-se na região uma forte corrente separatista, com base nos setores sociais dos centros urbanos e na população de pele mais branca, proprietários de terras da região leste.
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6
Parte desses atos foram transmitidos por redes de televisão e podem ser vistos no Canal da Bolívia TV Oficial no YouTube, através do link: https://www.youtube.com/watch?v=mUts0HsFTwk..
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7
Sobre os limites da assembleia constituinte em seus aspectos formais, ver Mayorga Ugarte (2006) e Garcés (2010).
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8
O texto aprovado pelo Congresso continha 144 alterações a 122 artigos.
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9
Como exemplos mais expressivos, citamos a retirada de apoio da CIDOB, das terras baixas do leste do país, e do CONAMAQ, do altiplano.
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10
A revolução de 1952 da Bolívia adveio da insatisfação da população boliviana com o Estado oligárquico que dominou o país por anos. A partir dela, ocorreu a nacionalização das principais empresas mineradoras do país, a realização de uma reforma agrária importante, mas que afetou apenas uma fração do país e também a ampliação do acesso à escola para a população rural que constituía a ampla maioria dos cidadãos bolivianos.
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11
Para um aprofundamento na composição da burocracia estatal com ênfase em sua origem social pós-2006, ver Soruco Sologuren (2016).
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12
A burguesia de Estado, ao contrário da formação histórica das demais frações da burguesia, tem como característica nascer do terreno político antes de constituir-se no econômico e, como pode afetar todos os momentos do ciclo geral do capital social, distingue-se conceitualmente da pequena-burguesia do setor público e também da burocracia estatal (Mutti, & Segatti, 1979).
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Vale ressaltar que Tapia (2009), ao tratar da questão da ARE na conjuntura de ascensão do MAS na Bolívia, acrescenta às clássicas modalidades de ARE - em condições normais (própria da burocracia política racional) ou em condições de crise política (o bonapartismo) - a modalidade de ARE decorrente da ascensão de partidos de trabalhadores e forças políticas de esquerda ao governo. As condições de possibilidade para esse tipo de ARE na Bolívia são constituídas em parte por essa possibilidade de o Estado dispor da acumulação do capital, e em parte pelo acúmulo político das organizações e setores sociais naquele país.
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Para mais informações, ver Radhuber (2014), Andreucci (2017) e Andreucci, & Radhuber (2017).
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Vale lembrar que se trata de um período conturbado de negociações intrapartidárias e com a burguesia da região da Meia-Lua para viabilizar a realização da assembleia constituinte e do novo texto constitucional.
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Ver mais em Espinoza, & Gerardi (2015).
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Para mais referências ao tema, ver Lacerda (2014).
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Chamamos a atenção aqui que não se deve confundir a memória discursiva com o interdiscurso. Esse corresponde ao local onde se encontrar encontram/circulam todos os dizeres que já foram ditos, porém, esquecidos. É o lugar da saturação, do non-sens. Já a memória discursiva, Conforme Indusrky (2011, p. 87-88), a memória “é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD e, por essa razão, é esburacada, lacunar”. Já o interdiscurso abarca a memória discursiva referente ao complexo de todas as FD.
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